A construção da megausina de Belo Monte, no rio Xingu, no estado brasileiro do Pará, não é apenas um caso de intervenção humana na natureza. É também a história dos efeitos sociais nocivos de tais intervenções, que repercutem sobre os direitos de milhares de cidadãos, sobretudo mulheres, crianças e indígenas.
Paralisado recentemente por causa de uma decisão da Justiça Federal tomada em meados de agosto, o projeto de Belo Monte destaca-se pelas proporções: uma vez pronta, será a terceira maior usina hidrelétrica do mundo, com previsão de custo de R$ 26 bilhões e área dos reservatórios ocupando 516 km², o que permitirá gerar em média 4500 megawatts por ano (cerca de 10% do consumo nacional). A dimensão da construção – retomada no final de agosto após liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal diante de recurso apresentado pelo governo federal – explica a complicada trajetória da obra, diante do seu impacto social. Belo Monte está longe de ser apenas um engenho tecnológico.
Coordenadora do Movimento de Mulheres de Altamira do Campo e da Cidade, Mariene Gomes afirma que a mobilização em torno da obra desatou um grave problema de fluxos populacionais. “O número de pessoas e trabalhadores não para de crescer por aqui. Se o município de Altamira já enfrentava graves problemas sociais, como a violência contra mulher, a situação só piorou. Lutar contra a construção da barragem é também uma forma de lutar pela liberdade, pela dignidade e pelos direitos das mulheres daqui”, observa, apontando como diferentes elementos se articulam na agenda de reivindicações.
A cidade de Altamira viu sua população aumentar de 100 mil habitantes para 145 mil, após o início da obra, em meados de 2011. Com uma infraestrutura precária, o poder público não tem conseguido dar conta dos problemas derivados do contingente de pessoas. “Vivemos em uma sociedade patriarcal, na qual a violência contra a mulher é um fato cotidiano. Infelizmente, as autoridades permanecem inoperantes. E as denúncias de abuso, de agressão e de violência sexual têm aumentado muito. Afinal, cada vez mais, com tanta gente chegando, os episódios de brigas e o consumo de álcool tornam-se comuns”, afirma Mariene Gomes.
O cenário atual não é novo para os habitantes da região de Altamira. O histórico de ausência do Estado no cumprimento de seus deveres é um elemento central na formação de uma tradição de mobilização de movimentos sociais. A construção da Transamazônica – estrada de proporções gigantescas (4.223 km) que liga a região Norte ao Nordeste – foi projetada pelo governo militar nos anos 1970 com o objetivo de integrar regiões afastadas em um país continental. No entanto, a obra impactou diversas localidades por onde se espalhou. O estabelecimento de uma malha viária não foi acompanhado pela ampliação de outras atribuições do Estado, nem pelo controle e regulação dos efeitos colaterais previsíveis de grandes obras.
A obra da rodovia também desatou um aumento expressivo da população nas localidades afetadas pelos canteiros. Os problemas sociais logo surgiram: ocupação desordenada do território, expulsão de indígenas de suas terras, violência por disputas fundiárias. O desenvolvimento foi parcial e custou caro: saneamento, educação, assistência médica, meios de transporte, em suma, serviços básicos não foram priorizados e, até os dias atuais, rareiam em Altamira, uma das cidades por onde a rodovia passa. Nesse contexto, a mobilização do movimento de mulheres compõe um quadro de carências sociais que atua em conjunto com outros movimentos para conscientizar a população.
A formação do movimento de mulheres na cidade, nos anos 1990, foi um reflexo das carências que atingiram e se perpetuaram em Altamira. Inicialmente, as mulheres se agruparam através de pequenas atividades cotidianas, como caminhar juntas para lavar roupa no igarapé (tipo de rio) e realizar almoços coletivos para incrementar os laços entre os habitantes. A dinâmica de associação foi ganhando corpo e escopo político. A participação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católica, foi determinante para o engajamento das mulheres em uma proposta mais formal, na qual as mulheres foram se conscientizando como sujeitos de direitos.
Uma das principais conquistas do Movimento de Mulheres de Altamira do Campo e da cidade foi a criação dos Conselhos Municipais de Saúde. Uma conquista muito comemorada, mas que, no entanto, está longe de resolver a amplitude dos problemas sociais, tais como a violência contra a mulher, fenômeno que tem sobrevivido ao longo do tempo em Altamira. Somente a taxa de criminalidade (furtos, roubos e crimes de gênero), segundo a Polícia Civil do Pará, aumentou 28% de 2010 para 2011.
De acordo com a coordenadora do movimento, a questão da violência, apesar da proteção garantida por lei às mulheres, não é tratada adequadamente pelo poder público. “A delegacia de mulheres opera em um lugar improvisado. O abrigo para as mulheres vítimas de agressões não funciona. É uma situação complicada, ainda mais com o quadro atual. Quando há denúncias de violência contra mulheres, a investigação e a proteção da vítima muitas vezes se perdem. A usina veio a somar-se aos diversos problemas que temos aqui”, lamenta Mariene Gomes.
A fragilidade dos serviços públicos em Altamira não se reflete apenas sobre mulheres vitimadas pela violência. As presidiárias também enfrentam problemas quanto ao encarceramento. Sem presídio feminino no município, as detentas que cumprem pena são transferidas para Belém, capital do Pará, que fica a cerca de 700 km de Altamira. “As mulheres têm sido presas por tráfico de drogas, na maioria dos casos forçadas ou incentivas pelos companheiros. Presas, elas são levadas para longe, porque o poder público não dá atenção à necessidade do presídio feminino. Parece que as mulheres não têm direito. Elas ficam longe dos filhos, da família. Isso é muito problemático”, critica a coordenadora do movimento de mulheres de Altamira, lembrando que o movimento entrou, junto com a Defensoria Pública, com ação cobrando na justiça que o Estado apresente planos de abrigar as presidiárias no município de Altamira.
A distância em relação aos filhos não é apenas uma questão de laços familiares. Com o afluxo crescente de gente, a exploração sexual de crianças e adolescentes tem sido cada vez mais frequente. Dados do Conselho Tutelar de Altamira mostram a evolução do problema: em 2009, foram 28 denúncias; em 2010, 42; e, para 2011, cujos dados ainda não foram computados, a previsão é de mais de 100 casos denunciados. “Garantir a cidadania das mulheres é também uma maneira de prevenir que as crianças sejam aliciadas pela exploração. Principalmente porque aqui em Altamira o cuidado com os filhos é uma tarefa das mulheres”, avalia Mariene Gomes.
O panorama dos serviços e das políticas públicas em Altamira torna as mulheres vulneráveis em inúmeras dimensões do cotidiano. A coordenadora do movimento de mulheres lembra que a qualidade da moradia na cidade é péssima. “Em um contexto de pobreza e de forte patriarcalismo, uma mulher morando em condições sub-humanas é refém da pobreza, do marido e das doenças. Uma refém que o poder público não ajuda. O aumento do contingente de pessoas aqui tem agravado a situação. Se o poder público não consegue resolver a questão da moradia, imagine com tantos novos habitantes.”, observa a coordenadora do movimento.
Com graves e antigos problemas estruturais em matéria de serviços básicos, o impacto social da construção da usina é agravado. Pessoas têm sido desalojadas, indígenas – cujas reservas estão na rota da barragem – têm migrado para o centro de Altamira sem sequer serem devidamente consultados pelas autoridades. A segurança tem deteriorado. “Há um estado de muita fragilidade aqui em Altamira. A incapacidade das autoridades em dar conta de tantos problemas é ainda mais preocupante, porque dá a impressão de que estamos desamparadas”, lamenta Mariene Gomes.
Apesar da amplitude dos problemas, o movimento de mulheres de Altamira tem buscado intervir de forma a minorar as dificuldades. A atuação em escolas tem tratado da conscientização sobre a violência de gênero. “Temos falado sobre a importância da Lei Maria da Penha e sobre a exposição à exploração sexual. Divulgar nossas ideias e demandas nas escolas é uma das formas que podem ajudar as pessoas daqui a criar uma visa crítica sobre a sociedade e sobre o meio ambiente. Assim, temos certeza de que poderemos alterar a situação atual, difundindo conhecimento. É o que nos motiva, afinal, a melhora das condições de vida dos habitantes daqui não tem sido uma preocupação do poder público”, finaliza Mariene Gomes.
Referência Bibliográfica:
LACERDA, Paula Mendes. O caso dos meninos emasculados de Altamira: polícia, justiça e movimento social. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2012.