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Desvio, estigma e disfarce
A demissão de um professor em São Paulo após este ter aparecido em um programa de TV participando de um curso de drag queen, sob a alegação de que aquilo “não era bom para a imagem da escola”, estimula a refletir sobre este e outros casos envolvendo processos de estigmatização e controle social no mundo do trabalho. Teorias interacionistas do desvio e divergência e da rotulagem (labelling theory) e estigma, estudadas por autores como Howard Becker, Erving Goffman e Gilberto Velho, permanecem interessantes para pensar como esse tipo de fenômeno social é ainda frequente em uma sociedade onde a diversidade (cultural, racial, sexual) é positivada cada vez mais através de ações afirmativas e inclusivas – muitas vezes por iniciativa do Estado –, principalmente voltadas para os campos da Educação e do Trabalho. Seguindo a linha de raciocínio empreendida por Goffman, o estigma refere-se à “situação do indivíduo que, por um determinado traço, está inabilitado para a aceitação social plena”. No entanto, o que chama a atenção no caso do professor paulistano é que, segundo ele, o diretor que o demitiu e o staff da escola sabiam de sua homossexualidade, que era pública e notória, e o que pesou em sua demissão foi ele ter aparecido em um programa televisivo dominical participando do curso para formação de drag queens. Assim, sua prática homossexual não aparece aqui como a marca que o desqualifica. Seu comportamento teria se tornado desviante, nocivo e prejudicial à empresa a partir da publicização desta sua identidade sexual – não problematizada desde que permanecesse discreta e ‘sob controle’ dentro dos muros da escola. Como agravante, também pode ser o fato dele ter aparecido em rede nacional travestido de mulher, em uma sociedade em que os papéis de homem e mulher são rigidamente definidos. Vale lembrar o depoimento de uma das fontes apresentadas por Filipina Chinelli no artigo “Acusação e desvio em uma minoria”, presente no livro “Desvio e Divergência: uma Crítica da Patologia Social”, de Gilberto Velho (1979): ”Homem fazer papel de mulher não é conveniente”. Três décadas depois da publicação do texto de Chinelli, a mesma frase foi usada nas entrelinhas da fala do diretor da escola que demitiu o professor, em São Paulo. Em pleno século 21, especialmente nos grandes centros urbanos como São Paulo, muita gente acha que a questão do preconceito está resolvida, e os direitos civis para as chamadas minorias estão assegurados. Sabe-se que não é bem assim, a julgar pelos atos de violência homofóbica impetrados contra gays nas ruas das principais cidades do Brasil, país que, apesar do advento dos direitos civis, ainda não conseguiu assegurar aos seus cidadãos LGBT os mesmos direitos à segurança e à liberdade dos quais desfrutam o grupo dominante. A situação brasileira ainda reforça o que foi dito pelo sociólogo norte-americano Louis Wirth em 1946: ”O status de minoria carrega consigo a exclusão de participação completa na vida da maioria”. Covering, ou disfarce Contudo, o advento dos direitos civis no país trouxe avanços. Exemplo: o acesso ao mercado de trabalho não pode ser negado a um homem gay ou a uma mulher lésbica devido a sua orientação sexual, ou a um homem ou mulher negra devido a sua cor. Porém, tais direitos também trouxeram consigo uma nova forma de discriminação, mais sutil na maior parte das vezes. Um gay ou uma lésbica podem manter-se no emprego, desde que não ultrapassem os limites da discrição – e com isso ameacem causar uma ruptura no sistema de valores mais ou menos equilibrado. A discriminação racial, por exemplo, não é mais contra todos os negros, mas pode se revelar somente contra aqueles que usam um cabelo diferente. Foi o que aconteceu com a jovem Esther Cesário: em seu primeiro dia de trabalho como assistente de marketing em um colégio de São Paulo, em 2011, ela foi repreendida pela diretora da instituição por ter uma flor presa em seu cabelo de estilo afro. Dias depois, a diretora a teria chamado novamente para reclamar do cabelo, pedindo que os deixasse presos, alegando que ela não poderia representar o colégio com aquela aparência. A mulher foi além: disse que compraria camisas mais longas para que a funcionária escondesse seus quadris largos. Ao prestar queixa de racismo em uma delegacia, a estagiária revelou ainda que a diretora contou que já tivera cabelos crespos, mas que os alisara para se adequar ao padrão de beleza exigido. Depois do incidente, Esther relata que a discriminação a afetou de tal forma que ela não consegue mais olhar-se no espelho e mexer no seu cabelo. Nesse novo modelo de discriminação, o indivíduo pode ter a sua identidade social, mas sem invadir o que a sociedade chama de normal ou ir contra o modelo “apropriado” de viver. Kenji Yoshino, professor de Direito e reitor na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, criou um novo termo para definir o processo a que pessoas estigmatizadas – por ostentarem um cabelo afro ou por serem gays ou lésbicas – têm de passar para se adequar à norma: “Covering”, título de seu novo livro, termo que, segundo ele, refere-se à “discriminação disfarçada”. ” Os negros americanos usam terno para trabalhar porque dizem que são mais respeitados vestidos dessa maneira. Mas quando estão com roupas de ginástica, são mal vistos até pelos vizinhos, porque aí são associados a bandidos. Ter o que eu chamo de disfarce faz toda a diferença entre ser um negro bom ou um negro mau. Se você faz parte de um grupo sempre excluído, inevitavelmente alguém vai pedir para você se comportar de uma maneira que não é a sua. Por exemplo, se você é gay, não pode andar com seu companheiro de mãos dadas na rua, apesar de ter a aceitação dos outros em relação a sua homossexualidade.”, indaga Yoshino, em seu livro. O antropólogo Sérgio Carrara, professor da UERJ e coordenador do CLAM, afirma: “Nesta perspectiva, o indivíduo é aceito, desde que se enquadre em certos padrões de respeitabilidade quanto ao seu modo de vestir, de ser, de estar. Ele diz para os pais e para os amigos que é gay, e não se sente diretamente discriminado por isso. Mas há uma espécie de preço nessa aceitação, que é justamente ser discreto, não trazer sinais muito visíveis dessa diferença”, analisa Carrara. Coordenador da pesquisa Política, Direitos, Violência e Homossexualidade, feita entre participantes das Paradas do Orgulho de diversas capitais, Sergio Carrara chama a atenção, no artigo “Só os viris e discretos serão amados?”, para o preconceito existente dentro da própria comunidade LGBT em relação aos comportamentos mais feminilizados. A pesquisa realizada na Parada do Orgulho do Rio de Janeiro, em 2004, revelou por exemplo que, entre os homens homossexuais, 44,6% preferem parceiros "mais masculinos", contra apenas 1,9% que os preferem "mais femininos". “Para alguns, por aumentar o preconceito, a feminilidade parece politicamente incorreta nos homens. Para outros, deve ser cuidadosamente policiada pelos que se aventuram no mercado dos afetos e paixões”, observa Carrara, no artigo. Como compreender então essa espécie de condenação política dos "trejeitos" femininos e a contemporânea valorização erótica de certa aparência viril? Para o antropólogo, a necessidade política de afirmação de uma homossexualidade viril pode não explicar inteiramente a rejeição da feminilidade nos homens gays. “É mais provável que estejamos frente a uma complicada resposta à discriminação, também presente em outras populações estigmatizadas. Nela, a rejeição da feminilidade reflete uma tentativa de desviar o preconceito”. Publicada em: 26/04/2012 |