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Entre o descarte e a memória

Em 2010, enquanto fazia a busca documental para sua tese, a doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Rita Colaço procurou sem sucesso por parte dos registros históricos de seu objeto de estudo: dos 13 processos judiciais que tratavam de direitos da população LGBT solicitados pela pesquisadora ao Tribunal de Justiça (RJ), 6 não foram localizados. Entre estes, os dois primeiros processos judiciais (1985 e 1991) que se tem notícia sobre a concessão da mudança de sexo e do nome a pessoas transexuais.

O episódio remete a um caso específico, mas é sintomático de um problema mais amplo que pesquisadores que trabalham com fontes documentais têm apontado como grave: a política nacional brasileira de preservação destas fontes expressa uma lógica de descarte e destruição que prepondera sobre a importância histórica dos documentos. O efeito deste cenário é o prejuízo que acarreta para a produção científica em geral e, especificamente, para o campo dos direitos humanos e sexualidade, no qual autos processuais são um relevante registro histórico dos direitos civis LGBT e das mulheres.

A trajetória das políticas e leis de preservação é longa. O artigo 1.215 do Código de Processo Civil editado em 1973 estabelecia que os autos processuais, expirado o prazo de 5 anos do arquivamento, poderiam ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou outro procedimento. Diante da pressão dos historiadores naquele momento, o artigo ficou em suspenso. “A nossa história de regras sobre preservação documental, como podemos observar, está associada há décadas a uma lógica de descarte que prevalece até os dias de hoje”, lamenta Rita Colaço. No ano de 1987, o Senado aprovou a lei 7.267, que dispunha sobre a eliminação de processos da Justiça do Trabalho cujo arquivamento ultrapassasse os 5 anos. O texto da lei previa que se houvesse, de acordo com autoridade competente, documentos de valor histórico, estes deveriam ser recolhidos no acervo do respectivo Tribunal. Quatro anos mais tarde, a lei 8.159 sobre política nacional de preservação de arquivos públicos e privados determinou que caberia ao órgão público a organização e eliminação dos documentos produzidos.

Em 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso baixou o decreto 4.073, que regulamentaria a lei 8.159, determinando que cada órgão público formaria uma comissão para avaliar e selecionar os documentos tendo em vista a guarda permanente ou a eliminação.

De acordo com Rita Colaço, é fundamental para a história do país e para a pesquisa científica que as comissões formadas nos órgãos públicos sejam verdadeiramente profissionais e guiadas pela lógica da história. “O que tem predominado são comissões constituídas de maneira restrita, sem a participação da comunidade científica interessada no patrimônio documental. A administração pública ainda está muito marcada pela ideia da história enquanto registro dos feitos e trajetórias de grandes personalidades. Diante da escassez de recursos e da imensidão do volume dos acervos, tem prevalecido a lógica das fontes documentais como um estorvo do qual os gestores precisam se livrar para cumprir metas de gestão”, observa Rita Colaço.

Célia Tavares, historiadora e professora da Faculdade de Formação de Professoras da UERJ, ressalva que entende a posição do poder Judiciário em descartar o material. “Há uma produção exponencial de material jurídico, o que torna um problema o processo de armazenar tamanho acervo. No entanto, para nós historiadores, fica uma sensação de invasão à nossa profissão. Muitas pesquisas no nosso campo dependem exclusivamente de fontes documentais antigas, da época da escravidão, inclusive. E é uma história que vai se perdendo por conta do modelo de preservação que temos”, ressalta Célia Tavares, que preside a seção do Rio de Janeiro da Associação Nacional de História (ANPUH-RJ).

Recentemente, no mês março, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) lançou edital para a eliminação de fontes documentais, o que gerou críticas entre pesquisadores diante da iminência da destruição de parte da história nacional. De acordo com a historiadora e funcionária da Vara de Trabalho de Imbituba (Santa Catarina) Dinah Lemos, já foram destruídos, em todo o território brasileiro, a maioria dos processos de 1940 a 2000. “Restam coleções de processos que ficaram em arquivamento provisório (por existência de dívidas não pagas), em todo o Brasil, que serão destruídas nos próximos cinco anos, se não forem preservadas por uma política de defesa da memória. Nessas coleções estão guardadas histórias de situações étnicas, culturais e econômicas específicas de cada região do país”, lembra Dinah Lemos.

A atuação de Dinah Lemos como funcionária da Vara de Trabalho permitiu que ela se deparasse com a maneira como os homens e as mulheres foram desenvolvendo suas vidas, com histórias de casamentos, separações, conflitos de diversos sentidos e valores. “Quando atuei em nas Varas de Trabalho em Porto Alegre, pude testemunhar processos judiciais entre reclamantes homossexuais e empresas reclamadas que os demitiram deixando um sentimento de discriminação por motivo da condição sexual do trabalhador. Em processos mais antigos, poderíamos investigar rastros de famílias homoafetivas muito tempo antes das leis atuais que tentam proteger os direitos dessas pessoas que querem formar casamentos duradouros entre pessoas do mesmo sexo, inclusive com a proposta de descendência, por filhos naturais de um dos parceiros ou adotados”, afirma Dinah Lemos.

De acordo com Dinah Lemos, o Brasil enfrenta, além das dificuldades relacionadas à perda de documentos primários por falta de políticas de preservação e à falta de orçamento para tal atividade, um problema de estratégia. “Não temos estímulo à preservação como uma atitude de vida em cada local de trabalho e produção de registros. Precisamos de atitudes de preservação documental fora do sistema acadêmico – universitário público, organizações não-governamentais e centros de pesquisa de iniciativa privada – articuladas nas comunidades, nas instituições, nos poderes administrativos federais, regionais e municipais. No atual momento cultural em nosso país, estamos vivendo um modo de vida sem preservação de memória, com perdas preocupantes daquilo que a psicanálise chama de ‘território simbólico’”, avalia Dinah Lemos.

Tanto Rita Colaço quanto Dinah Lemos concordam que as decisões sobre arquivamento e preservação não devem ser feitas de maneira vertical, a partir de uma cúpula de comando dentro dos órgãos. De acordo com Rita Colaço, não há democratização do processo de decisão. “Falta diálogo com pesquisadores. Além disso, é preciso repensar e redefinir como é feito o trabalho de classificação dos documentos. Por exemplo, estabelecer a hierarquia entre os documentos é um exercício difícil, que precisa ser encarado de uma maneira ampla, plural e sob uma perspectiva histórica. Quais são os critérios que balizam a classificação dos documentos? Como é feita a triagem? São questões que pedem um olhar histórico. Mas, infelizmente, os historiadores estão alijados no modelo de preservação que temos. Uma saída seria garantir a presença de historiadores nas comissões que selecionam e avaliam a documentação dos órgãos. Além disso, seria interessante a utilização de estudantes de história nestas comissões”, sugere Rita Colaço.

A criação de fundos arquivísticos temáticos, afirma Rita Colaço, também seria um passo em prol da preservação das fontes documentais. “Temos as históricas lutas por cidadania da população LGBT e por direitos das mulheres. Então, a criação de fundos facilitaria o trabalho de preservação e seria de extrema relevância para pesquisas históricas – como a do meu doutorado – no país”, sugere Rita Colaço.

Dinah Lemos defende que a memória de um país não pode ser tratada e selecionada apenas pelos poderes que estão no comando. “Temos que produzir memória organizada e tecnicamente preservada (higienização e catalogação) em cada município, em cada local de serviço público, em cada local onde existam arquivos públicos. Somente os próprios atores de cada um desses espaços poderão fazer escolhas múltiplas, diversas, conforme as particularidades de cada região e de cada comunidade”, afirma Dinah Lemos, para quem as escolas também são um ambiente importante para estimular a reflexão da memória histórica.

Recentemente, lembra Célia Tavares, a ANPUH patrocinou uma negociação em Brasília para, nas discussões sobre a reforma do Código de Processo Civil em pauta no Congresso nacional, sensibilizar os parlamentares sobre a importância de um historiador nas comissões de seleção de arquivos dos órgãos públicos. “Infelizmente, nosso modelo está muito enraizado e institucionalizado. São décadas de um padrão de preservação que, diante de sugestões de mudança, se mostra contrário. Temos que manter a mobilização para alterar a política atual. Acredito que uma alternativa é digitalização dos materiais jurídicos, embora também haja problemas, como a questão do financiamento, pois é uma técnica cara. Mas, em todo caso, é uma forma de resguardar nossa história ao invés de destruí-la e enterrá-la, como ocorre atualmente”, conclui Célia Tavares.

Publicada em: 26/04/2012

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