A presidente Dilma Rousseff sancionou recentemente a Lei de Acesso à Informação Pública, resultado da pressão dos movimentos sociais, porém um longo caminho ainda precisa ser percorrido para sua implantação. A lei representa um avanço para a democracia brasileira, mas contém limitações ao pleno exercício do acesso à informação pública no âmbito dos direitos humanos. O tema do acesso à informação e ao conhecimento já tinha sido objeto de recomendação proposta pelo Peru na Primeira Revisão Periódica Universal (RPU) do Comitê de Direitos Humanos da ONU em 2008. A lei aprovada em novembro de 2011 obriga os três poderes, em todos os seus níveis, a adotarem a transparência como regra para seus atos públicos. O avanço, no entanto, se restringe ao acesso à informação pública: trata-se, portanto, de uma lei cujo foco é específico sobre as ações do poder público. Asim, não abarca todas as demandas no campo do direito à informação, que é bem mais amplo.
O Brasil será submetido à nova sabatina no 2º. Ciclo da RPU. Entre os relatórios da sociedade civil apresentados como insumo para essa revisão está o produzido pela APC. Esse relatório destaca o alerta feito pelo relator especial da ONU sobre liberdade de expressão, Frank La Rue, em 2011, a respeito das ameaças ao acesso à internet como agressão às normas internacionais de direitos humanos.
A falta de uma regulamentação com base nos direitos humanos sobre a internet no Brasil refletiu-se timidamente, em 2008, na primeira RPU, porém no país ocorria um debate forte sobre o tema, principalmente em função da possibilidade de aprovação no Congresso Nacional do PL 84/1999, conhecido como lei Azeredo, mas apelidado de AI-5 Digital. A resistência da sociedade brasileira à Lei Azeredo resultou na proposta de um Marco Civil para a internet no Brasil. Atualmente, tramitam no Congresso ambas as iniciativas que são de naturezas antagônicas: o Marco Civil da internet, que dispõe sobre a regulação da internet a partir da garantia de direitos como privacidade, liberdade de expressão e acesso à informação; e a Lei Azeredo (PL 84/1999), que privilegia a regulação sob o prisma das restrições e punições, tipificando crimes cibernéticos e estabelecendo, por exemplo, a coleta e retenção dos dados de navegação dos usuários a partir de critérios passíveis de contestação no judiciário – medida apontada como invasiva e controlista pelos movimentos sociais.
“O que acontece no Congresso Nacional é uma batalha entre a ótica do controle e a ótica da liberdade. A Lei Azeredo é restritiva e caminha na contramão dos princípios elementares da internet, como a horizontalidade. Contradiz a própria natureza da internet, que é um domínio descentralizado, onde todos podem ter voz. É uma lei que inverte o processo do marco legal, priorizando sanções penais, como a privação de liberdade, antes de tudo”, afirma Magaly Pazello, membro do Programa de Apoio a Rede de Mulheres da Associação para o Progresso das Comunicações (APC).
A internet é um fenômeno relativamente recente. As relações entre a internet e os direitos humanos começaram a ser tecidas de forma mais consistente há poucos anos. Entre 2003 e 2005, durante a Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação, pela primeira vez foram debatidas no plano internacional questões complexas com relação à internet e aos direitos humanos. O que levou ao entendimento de que o gerenciamento da rede deve ser multilateral, transparente e democrático, como afirma a declaração final do encontro.
O Brasil, afirma a jornalista e coordenadora de comunicação e políticas públicas do Nupef, Graciela Selaimen, é reconhecido internacionalmente por sua gestão da internet através do Comitê Gestor da Internet (CGI), entidade independente, com representação do governo, da sociedade civil, da academia e do setor privado. No entanto, esse gerenciamento se dá no âmbito técnico. “É uma realidade bem-vista e referência no Fórum de Governança da Internet (ONU). Mas, em matéria de leis que regulem a internet, de uma perspectiva de direitos a serem garantidos e preservados, há um vácuo”, afirma Graciela Selaimen, que enxerga nesse vácuo riscos quando o assunto é direitos sexuais e reprodutivos.
Acesso à informação e direitos reprodutivos
As questões relativas ao acesso à informação em matéria de direitos reprodutivos há anos colocam em lados opostos defensores dos direitos das mulheres, das liberdades individuais e direitos civis e grupos religiosos conservadores.
Em um país marcado por uma acentuada tradição cristã conservadora e pela atuação de grupos que defendem radicalmente a restrição total ao aborto, as discussões sobre saúde e direitos reprodutivos são crivadas frequentemente por discursos raivosos e fundamentalistas. Estes discursos têm o objetivo de criar uma tensão grande no debate público: trata-se de uma estratégia, como afirma Magaly Pazello, para interditar o debate, impedindo o fluxo de ideias e a multiplicidade de vozes e perspectivas filosóficas sobre o tema. No Congresso brasileiro, são recorrentes as iniciativas que tentam restringir o acesso à informação quando estão envolvidas questões relativas à saúde e aos direitos reprodutivos, bem como a sexualidade.
Exemplos das propostas legislativas de restrição aos direitos reprodutivos são os projetos de lei 2690/2007 (arquivado) e 740/2011. Ambos têm como propósito a restrição e a criminalização do acesso à informação sobre medicamentos, com especial foco sobre medicamentos utilizados para procedimentos de abortamento. Proposto pelo senador Marcelo Crivella, o PL 740/2011 prevê que “a publicação, em meios de comunicação social, de matérias de cunho jornalístico ou de difusão de informação científica sobre medicamentos e terapias deverá ser acompanhada de mensagem que informe o nome, o volume e a data da publicação científica em que foram publicados os resultados dos estudos”. E estipula que a autoridade sanitária deverá exigir a publicação sobre as reações adversas do emprego da medicação.
De acordo com Magaly Pazello, o que se nota é uma tentativa constante de limitar o acesso à informação em saúde nos termos estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ou seja, uma informação não-discriminatória, com base científica e de fácil compreensão para todas as pessoas. São patamares mínimos necessários que contribuem para a qualidade de saúde dos indivíduos. “No entando, a informação qualificada e de base científica ainda é vista como inimiga no que diz respeito a saúde reprodutiva das mulheres, especialmente quando se trata do tema aborto.”, afirma Magaly Pazello.
Tecnologias da informação e proteção aos dados pessoais
Outro aspecto que chama a atenção é o armazenamento de dados pessoais nos sistemas informatizados, por exemplo, por agentes do Estado. “Não sabemos, por exemplo, como os dados dos cidadãos são geridos e protegidos nas bases de dados controladas pelo Estado. Não é uma questão apenas de internet, é o uso interconectado de informações dos serviços públicos. Como garantir a segurança e a confidencialidade dos registros que se fazem no âmbito da saúde? Sem leis que regulamentem o domínio da informação, o gerenciamento é uma caixa-preta. Isso é preocupante quando estão em debate os direitos sexuais e reprodutivos. É fundamental criarmos formas de monitoramento para preservar a intimidade dos cidadãos. Por isso, o Marco Civil é uma iniciativa de extrema importância”, observa Graciela Selaimen, do Nupef.
Para Magaly Pazello, não apenas o Marco Civil em discussão no Congresso, mas também o Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais é crucial para a criação de uma base normativa relativa à privacidade e ao tratamento dos dados das pessoas na internet e em bases de dados informatizados. “A iniciativa de uma base normativa é fundamental quando estamos falando de direitos sexuais e reprodutivos, sobretudo quando estamos em pleno processo de debate sobre a aprovação do Marco Civil. A proteção à intimidade, à privacidade e às liberdades individuais deve ser regra inviolável”, afirma.
De acordo com Graciela Selaimen, a Revisão Periódica da ONU será um espaço para tais desafios. “Haverá resistências, afinal, são interesses de diversos setores que estão em jogo. A RPU vai ser importante para mostrar que, mesmo com o Marco Civil tramitando, o Brasil ainda tem um longo caminho a trilhar para garantir que direitos e garantias civis sejam legitimados também na internet”, conclui.