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Brasil

Homossexualidade: uma categoria criada

Por Bruna Mariano
Fábio Grotz
Edição: Andrea Lacombe
Washington Castilhos


A agenda pública e política de 2011 tem sido preenchida em larga medida por discussões e decisões que envolvem a população LGBT. Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro reconheceu, por unanimidade, as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Casais gays passaram a ter acesso a direitos que até então eram restritos a casais heterossexuais. Além disso, pela primeira vez na história, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu informações sobre casais homossexuais na pesquisa do Censo Demográfico. Tais avanços, no entanto, não indicam um horizonte plenamente pacífico e inclusivo. O PL 122, que tramita no Congresso Nacional e tem como objetivo criminalizar a homofobia, esbarra na resistência de setores conservadores que formam, no parlamento, a chamada bancada evangélica.

A dificuldade de se fazer enxergar a necessidade de uma lei que proteja pessoas vítimas de homofobia – assim como foi feito com os negros, através da lei anti-racismo, e com as mulheres vítimas de violência, através da lei Maria da Penha – está apoiada em concepções naturalizadas, que buscam explicar desi­gualdades socioculturais, baseando-se em supostas diferenças inatas, como se houvesse algum substrato natural a embasar – e justificar – assime­trias que são produzidas e reproduzidas no plano social e cultural. Nesta semana em que a Parada do Orgulho Gay de São Paulo reuniu, segundo organizadores, 4 milhões de pessoas, e no mundo se celebra o Dia do Orgulho Gay (28 de junho), ouvimos especialistas para discutir o surgimento da homossexualidade enquanto categoria e a noção de que a heterossexualidade seja natural e de que as práti­cas que não se encaixam nesse modelo sejam antinaturais ou “desvios”, noção esta que pode ser apontada como um dos fatores da interdição de gays, lésbicas, travestis e transexuais a diversos direitos.

Nem sempre se disse que as pessoas eram homos­sexuais por manterem relações sexuais com outras do mesmo sexo. Isso não significa, con­tudo, que não houvesse tais práticas. O que não havia era um modo específico de catalogá-las, categorizá­-las, de nomeá-las como o faze­mos atualmente. É nesse sentido que é possível falar de uma “invenção da homossexualidade”. A homossexualidade enquanto categoria data do século XIX, época do surgimento da Sexologia.

“A questão de a categoria da homossexualidade ter surgido no século XIX não quer dizer que contatos sexuais entre pessoas do mesmo sexo não tenham sido objeto de condenação formal. Mesmo no século XIX, havia a sodomia, que dizia respeito não a pessoas, mas a alguns tipos de atos. Michel Foucault diz, em uma passagem clássica, que o homossexual é um personagem que tem uma história, uma vida, uma disposição anatômica diferente. Já o sodomista era apenas alguém que infringia a lei. Ele não era um personagem, era apenas um infrator”, explica o antropólogo Sergio Carrara, coordenador do CLAM.

O pesquisador explica que as concepções acerca da homossexualidade foram se modificando ao longo dos séculos. “Historicamente, a homossexualidade já foi considerada pecado, crime e doença. A despatologização da sexualidade é um processo recente”. A ideia do pecado remete a narrativas religiosas, que condenavam a sodomia. “Do ponto de vista do Cristianismo, os prazeres conjugais eram mais legítimos. O que se condenava era a possibilidade de se ter prazer sem algum tipo de sacrifício, o prazer pelo prazer. A reprodução era vista como uma espécie de tributo a ser pago pelo prazer do ato sexual. O sexo anal era condenado do mesmo modo em relações heterossexuais”, completa Carrara.

Mesmo na Grécia Antiga, quando ainda não havia o conceito de homossexualidade, a relação entre pessoas do mesmo sexo era socialmente regulada. Naquele tempo, entretanto, as práticas homossexuais não eram condenadas em si mesmas, de acordo com o historiador Paul Veyne. Segundo ele, a moral sexual vigente entre gregos e romanos condenava a “passividade sexual” quando praticada por um homem livre.

“O problema era quando havia uma inversão hierárquica: quando uma pessoa de status superior assumia uma posição considerada feminina, ou seja, era penetrada por uma pessoa mais jovem ou por um escravo. Não é adequado dizer simplesmente que a homossexualidade era aceita. As práticas não eram aceitas de todas as formas”, explica Sergio Carrara. “As relações sexuais, no contexto grego, estavam inseridas em um processo mais geral de pedagogia, de iniciação, que não tinha nada a ver com a ideia de que as pessoas se manteriam homossexuais”.

O pesquisador explica ainda que a configuração grega está próxima do que esteve vigente na sociedade brasileira, e ainda está em determinados nichos. Segundo tal noção, um homem pode ter relações sexuais com outro homem desde que mantendo a posição de ativo sexualmente. Isso não compromete sua masculinidade, e o preconceito recai somente sobre o chamado passivo sexual.

O antropólogo inglês Peter Fry, autor do livro O que é homossexualidade?, lembra que na Inglaterra do século XIX, as práticas, e não os indivíduos, eram alvos de condenação. “A restrição inglesa de sodomia de fato era uma legislação que tinha a ver com atos sexuais. O indivíduo não era condenado por ser homossexual, ele era condenado porque queria manter relações sexuais com michês”, analisa.

No texto “Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil”, referência para os estudos acadêmicos sobre as homossexualidades, Peter Fry analisa a configuração brasileira e explica que, até a década de 1960, havia uma divisão hierárquica nas relações homossexuais. Enquanto o ‘homem’ deveria se comportar de uma maneira ‘masculina’, a ‘bicha’ tenderia a reproduzir comportamentos geralmente associados ao papel de gênero feminino. No ato sexual, o ‘homem’ penetra, enquanto a ‘bicha’ é penetrada.

A escala Kinsey

Segundo o famoso entomologista norte-americano Alfred Kinsey, “os machos não se dividem em dois grupos distintos: os heterossexuais e os homossexuais. O mundo não está dividido em ovelhas e carneiros. Nem todas as coisas são negras, nem todas são brancas. Só a mente humana inventa as categorias e tenta abrigar os fatos em compartimentos”. Kinsey tornou-se famoso ao mostrar que os seres humanos não se classificam quanto à sexualidade em apenas duas categorias (exclusivamente heterossexual e exclusivamente homossexual).

“Segundo Kinsey, os indivíduos apresentam diferentes graus de uma ou outra característica, ou seja, é muito mais comum um indivíduo ficar no meio, entre a heterossexualidade e a homossexualidade, do que estar nos dois pólos extremos, totalmente heterossexual ou totalmente homossexual. Ele era anti-identitário. Se pensarmos modernamente, hoje em dia ele estaria se insurgindo contra as concepções mais identitárias do “eu sou isso, eu sou aquilo”. Ele achava que havia uma flexibilidade na sexualidade, o que é bem interessante”, afirma a antropóloga Jane Russo (CLAM/IMS/UERJ).

Em sua pri­meira obra, Sexual behavior in the human male (O comportamento sexual do macho humano), de 1948, fruto de uma pesquisa, Kinsey provocou inúmeras polêmicas ao apontar que um grande número de homens heterossexuais norte-americanos já havia fantasiado ou mesmo tido experiências sexuais com outros homens em algum momento de suas vidas, trazendo assim a ideia da disjunção e incoerência entre práticas e identi­dades sexuais. A partir daí, ele elaborou uma tabela que definia os indivíduos a partir de gradações de orientação sexual. Conhecida como “escala Kinsey”, a tabela estipulava categorias como “exclusivamente heterossexual”, “exclusivamente homossexual”, “assexuado” e outras variações que mesclavam comportamentos hetero e homossexuais.

“A ideia de Kinsey é de que na natureza você encontra contínuos, você não encontra categorias fixas. E as categorias são produzidas pelos homens e mulheres, pela sociedade. Aprecio muito o trabalho de Kinsey porque ele, como biólogo de abelhas, tinha uma capacidade de enxergar que essas categorias não eram naturais, não pertenciam à suposta fixidez da natureza”, interpreta Peter Fry.

A pesquisa de Kinsey inovou no sentido de ter como foco indivíduos que se auto-denominavam heterossexuais e, portanto, estariam dentro dos padrões de “normalidade”, mas que adotavam práticas supostamente desviantes. Até então, o investimento das ciências biológicas na sexualidade estava concentrado nos supostos desvios em relação à heterossexualidade, sendo comum usar o cérebro, os hormônios e a fisiologia de uma maneira geral para explicar comportamentos sexuais.

A trajetória das pesquisas nesse campo foi intensificando-se ao longo das décadas, ampliando os conceitos e os saberes sobre a sexualidade. Cada vez mais, comportamentos e desejos foram sendo pensados dentro de uma perspectiva construcionista, em que as interações sociais e culturais seriam tão ou mais determinantes que as características biológicas. Uma das pesquisas que se encaixa nesse contexto, publicada em 1970 pelo sociólogo norte-americano Laud Humphreys, foi a Tearoom Trade (“sexo impessoal em lugares públicos”). O autor observou as aproximações sexuais entre homens em banheiros públicos. O foco da pesquisa recaía sobre as práticas homossexuais que envolviam, além dos homens gays, homens que se identificavam como heterossexuais. Dessa forma, Humphreys mostrou que não havia uma divisão estanque entre homo e heterossexualidade. De acordo com o estudo, as práticas eram circunstanciais e não definiam plenamente as identidades sexuais.

Instrumento para fins políticos

Michel Foucault mostra que não é possível pensar na categoria “homossexualidade” sem levar em conta a teoria médica das perversões. Há na segunda metade do século XIX uma batalha em torno de uma definição jurídica ou médica do que então se chamava “sodomia”. A sodomia era um ato de delinqüência, ou um pecado. “Condenava-se o ato e não a pessoa. Quando a sexualidade começa a ser medicalizada, toda a concepção se transforma. Não se trata mais de condenar um ato, mas de compreender (e tratar) uma pessoa que se caracteriza por certo tipo de desejo, por um tipo de orientação sexual, como falamos hoje em dia. O “perverso” surge então como um personagem a ser estudado e explicado pela medicina (e não mais condenado pela justiça). A discussão é muito centrada em torno da chamada “inversão”, que depois vai ser chamada de “homossexualismo”. O homossexual era classificado como um pervertido, sendo a perversão o que escapava da “normalidade” do casal heterossexual. E, na medida em que a homossexualidade era uma doença, ela teria que ser tratada pelos médicos, e não pela justiça”, relata Jane Russo.

Tratar a homossexualidade como doença foi a forma encontrada pelos ativistas políticos e estudiosos do tema na Europa do século XIX para retirá-la do domínio da justiça. Havia na Alemanha unificada uma luta contra o código civil prussiano, que criminalizava a chamada sodomia, e, nesse momento, medicalizar a homossexualidade era mais avançado, pois implicava sua descriminalização. Essa era a ideia sustentada pelo médico, sexólogo e ativista político alemão Magnus Hirschfeld, um dos fundadores, em 1897, do Comitê Científico-Humanitário, cujo objetivo era defender os direitos dos “invertidos” e revogar o parágrafo 175 da lei alemã, que penalizava as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Vem daí a noção da homossexualidade como doença, noção esta especialmente defendida pela Psiquiatria. No entanto, nos efervescentes anos 1960, o então emergente movimento homossexual, na luta em defesa das “minorias sexuais” (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais), passou a bus­car sua afirmação política colocando-se justamente contra o discurso médico que se tecera em torno delas. Desde o início, o movimento gay contrapunha-se à medicalização, à patologização da homossexualidade, à noção de homossexualismo, ou seja, à concepção da homossexualidade como doença física ou mental. Então, de antiga perversão, depois transformada em patologia, a homossexualidade passou a se transformar, assim, cada vez mais, em uma questão de disputa política.

A visibilidade crescente da homossexualidade tem repercutido politicamente na vida nacional e mundial. Legislações e políticas públicas inclusivas e protetivas têm sido debatidas e implementadas nos últimos anos. O cientista político Mario Pecheny, da Universidade de Buenos Aires, na Argentina – onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo é legalizado –, explica que a homossexualidade, enquanto categoria analítica destinada a taxonomizar uma prática e um tipo de sujeito, vem sendo utilizada para a reivindicação de direitos. “Se a homossexualidade é uma condição ou tendência (natural, genética ou ancorada no inconsciente ou na infância), não seria justo penalizá-la ou persegui-la, e tampouco tentar curá-la. Como todos os direitos, o sentido político da homossexualidade, em seu conteúdo e em sua direção, define-se historicamente. Tal concepção de homossexualidade pode ser um instrumento valioso e localizar-se no sentido da justiça social e erótica”, afirma.

O conceito da homossexualidade, que Mario Pecheny define como instrumento para fins políticos, variou historicamente e continua se alterando. Para o cientista político argentino, “a matriz que definiu a homossexualidade como condição, e logo como identidade de sujeitos e práticas, permitiu tanto o avanço como a interrupção e a armadilha conservadora e excludente. Julgar essa construção não pode ser feito fora da história e das lutas, que continuam”.

As possíveis causas das interdições

A persistência do preconceito explica, em grande medida, as dificuldades legislativas e jurídicas para a ampliação dos direitos LGBT. Basta lembrar que, mesmo depois da decisão da Corte máxima do país, um juiz do estado de Goiás se achou no direito de anular o contrato de união estável de um casal gay que tinha sido registrado em cartório. Em entrevista exibida na televisão, Jeronymo Villas Boas justificou a decisão argumentando que um casal gay não pode gerar prole e, portanto, não tem condições de ser considerado uma família. “Se você fizer um experimento, levando para uma ilha do Pacífico dez homossexuais e ali eles fundarem um Estado, sob a bandeira gay, e tentarem se perpetuar como Estado, eu acredito que esse Estado não subsistiria por mais de uma geração”, afirmou ao programa “Fantástico”, da Rede Globo.

Segundo Sergio Carrara, o preconceito que existe em relação a casais homoafetivos não tem uma única raiz. “O estigma não me parece ser apenas causado pelo fato de serem relações não-reprodutivas. Outros componentes aparecem, como a ideia da promiscuidade sexual, da homossexualidade relacionada à pedofilia ou à doença. Ou seja, outros fatores no imaginário em torno da sexualidade vão fazer com que ela se torne foco de reprovação e preconceito”, argumenta.

A associação entre pedofilia e homossexualidade foi notícia esta semana no Brasil. Em discurso na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), a deputada Myrian Rios, a pretexto de criticar um projeto de emenda constitucional estadual que inclui a orientação sexual no rol de direitos e garantias fundamentais, estabeleceu um paralelo entre orientação sexual e perversão sexual. Segundo a parlamentar, “digamos que eu tenha duas meninas em casa e contrate uma babá que mostra que sua orientação sexual é ser lésbica. Se a minha orientação sexual for contrária e eu quiser demiti-la, eu não posso. O direito que a babá tem de querer ser lésbica é o mesmo que eu tenho de não querer ela na minha casa. Vou ter que manter a babá em casa e sabe Deus, até, se ela não vai cometer pedofilia contra elas".

Mesmo tendo sido reconhecidas pelo STF, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, a prerrogativa do casamento ainda está atrelada aos casais heterossexuais, embora o primeiro casamento civil de um casal gay tenha sido autorizado no Brasil, nesta semana. “A lei diz que se pode converter união estável em casamento. Então, se a decisão do STF se aplica à união estável, por que não pode ser aplicada ao casamento? O que pode acontecer se um casal homoafetivo quiser converter sua união estável em casamento?”, questiona a presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Adriana Galvão.

Em artigo para o CLAM, o padre Luís Corrêa Lima, historiador e professor da PUC-RJ, explica que a família tem se modificado ao longo dos séculos. “Na sociedade civil está se ressignificando o conceito de família, de modo a incluir as uniões homoafetivas. O casamento religioso, por sua vez, continua fortemente enraizado na heteronormatividade da tradição judaico-cristã. Mas em países escandinavos e em regiões onde as uniões homoafetivas são comuns, Igrejas como a Anglicana e a Luterana realizam bênçãos para estes conviventes, embora distinguindo estas uniões do casamento. As mudanças na tradição não são impossíveis de acontecer, trazendo novas compreensões e a aplicações da chamada lei natural”, afirma no texto Luís Corrêa Lima.

O juiz Roger Raupp Rios, também em artigo escrito para o CLAM na esteira da decisão do STF, elogiou o reconhecimento da união de casais gay-lésbicos como entidades familiares. Segundo ele, o significado da decisão é inestimável para a consolidação da democracia e dos direitos fundamentais.

Publicada em: 29/06/2011

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