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Dois lados de uma mesma moeda?

por Washington Castilhos

No início de dezembro a Justiça Federal revogou a liminar que suspendia a regulamentação da ortotanásia no Brasil. Com a decisão, médicos poderão suspender tratamentos invasivos que prolonguem a vida de pacientes em estado terminal sem chances de cura, de acordo com a vontade do doente ou de seus familiares. A ortotanásia é o não prolongamento artificial da vida sem perspectiva de melhora da condição clínica. Significa não intervir no processo natural de morte, apenas cuidar da pessoa, amenizando seu sofrimento. A prática serviria para evitar a distanásia, que significa prolongar o processo de morte, sem perspectiva curativa. A ortotanásia não induz à morte, como a eutanásia, procedimento realizado para interromper um sofrimento irremediável.

No mundo, a ortotanásia já é praticada legalmente em países como a Suécia, Inglaterra, Canadá e Japão. Já a eutanásia é polêmica, porque envolve questões de ética e moral, e por não haver consenso a respeito do que sentem e pensam os doentes em coma ou em estado vegetativo. O primeiro país a autorizar a eutanásia foi a Holanda, em 2001, seguida pela Bélgica e Luxemburgo. Em 2010, a Alemanha autorizou o suicídio assistido, condição já autorizada em alguns estados norte-americanos e em outros países.

No Brasil, em 2006, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou a Resolução n.º 1805/2006, que autoriza a interrupção de tratamentos desnecessários quando não se apresenta chance de cura. Isso inclui, por exemplo, desligar o aparelho de um paciente na UTI e deixá-lo passar seus últimos dias em casa, se essa for sua vontade. No ano seguinte, a pedido do Ministério Público, a Justiça Federal concedeu liminar suspendendo a referida Resolução para análise da constitucionalidade da norma ética. Com a decisão judicial do início do mês, a regulamentação do CFM sobre a ortotanásia no Brasil permanece vigente e legalmente válida.

A tendência brasileira na jurisprudência em torno das decisões médicas ao final da vida mostrou uma flexibilização com a Lei Covas (Lei Estadual 10.241, de 1999), em São Paulo, que, no mesmo sentido da Resolução do CFM, estabelece a possibilidade do médico de respeitar o desejo da pessoa por não realizar procedimentos médicos não curativos. A Lei foi proposta pelo ex-governador paulista Mário Covas, que teve câncer e optou por passar seus últimos momentos de vida recebendo apenas cuidados paliativos.

O respeito ao direito da pessoa e a possibilidade do médico acolher o pedido de interrupção de tratamentos não curativos consta do novo Código de Ética Médica, aprovado pelo Conselho Federal de Medicina, em vigência desde abril deste ano, sob o seguinte texto: “nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”(...) e o parágrafo único explicita que “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. Esta mudança no código que rege a prática médica denota um movimento contrário à obstinação terapêutica. No entanto, a palavra ortotanásia não aparece de forma explícita.

Outro fato importante de salientar é a posição da Igreja Católica, que se coloca claramente contra a distanásia e em prol da ortotanásia. A morte do papa João Paulo II, em 2005, é um exemplo conhecido da prática. O sumo pontífice afirmou que não desejava mais estender o tratamento e sua vontade foi respeitada.

Segundo especialistas, exemplos de casos nos quais a ortotanásia foi aplicada, como de Covas e de João Paulo II, evidenciam dois princípios importantes: o da qualidade de vida e o da autonomia individual. Embora a Igreja Católica tenha se declarado favorável à prática, tais princípios possibilitam uma ligação entre a chamada “morte no momento certo” e outro procedimento, nunca visto com bons olhos pelo Vaticano: o aborto voluntário ou a interrupção da gravidez, por decisão da mulher.

“A ortotanásia levanta a ponderação entre o que cada um considera uma boa vida e os possíveis resultados de alguns recursos, no sentido de proporcionar um tempo de vida, com qualidade”, avalia a médica e antropóloga Rachel Aisengart Menezes, professora adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ).

“Deslocamos a discussão sobre a possibilidade curativa e o dever médico de utilizar todos os recursos existentes para manutenção da vida, e passamos a questionar o uso desses recursos em relação à qualidade de vida desejada pela pessoa: qual a qualidade de vida e as alternativas disponíveis para sua melhoria naquele momento? Ter sua vida mantida por respirador e alimentação artificiais, em coma? A decisão de que tipo de qualidade de vida a pessoa deseja para si é o aspecto central desta discussão. No caso da ortotanásia, privilegia-se este conceito de qualidade de vida em lugar do tempo ou da ‘quantidade’ de vida”, analisa a advogada e especialista em bioética Miriam Ventura, também professora do IESC/UFRJ.

Ortotanásia e aborto voluntário: dois lados de uma mesma moeda?

Segundo Miriam, o conceito de qualidade de vida pode ser aplicado no caso de aborto por decisão da mulher, considerando tanto a expectativa desta como a do nascituro. “Que qualidade de vida terá esta mulher e seu filho diante do não desejo dela ou de alguma impossibilidade de construção de uma boa vida para ambos? As justificações para o aborto de gravidez resultante de violência, por necessidade econômica da mulher, por condições psicológicas ou de risco à sua saúde, têm como fundamento o princípio da qualidade de vida. Tal posição afasta-se do princípio da sacralidade da vida, ou seja, da impossibilidade absoluta de se interromper o processo de desenvolvimento de um ser. É razoável justificar o aborto nos casos de violência sexual em razão da insuportabilidade da perpetuação desta violência por toda uma vida, tanto para o nascituro quanto para a mulher. O principal valor em jogo, no caso do aborto voluntário, nesta e em outras situações, é a qualidade de vida da mulher. Da mesma forma como ocorre na ortotanásia, é a pessoa diretamente afetada – no caso a mulher – quem deve decidir, considerando que o ônus e todo o custo da gestação e da maternidade são seus”, diz ela.

A pesquisadora aponta uma tendência a uma crescente legalização, e destaca que os países que autorizaram práticas como a ortotanásia e o aborto sejam de tradição religiosa protestante. “Há uma diferença de princípio religioso básico entre o Protestantismo e a Igreja Católica. A ética protestante enfatiza a prosperidade, valorizando a qualidade de vida e a autonomia individual, que é central, enquanto as religiões de origem judaico-cristã defendem a sacralidade da vida. Segundo essa lógica, a vida é sagrada por si só, e sua proteção não tem preço. Há uma influência cultural e ética muito forte desta moralidade religiosa no contexto brasileiro”, salienta Miriam Ventura.

“Assim como os primeiros países a legalizarem o aborto possuíam uma forte tradição protestante e, a partir de então, países de tradição católica passaram a autorizar legalmente a interrupção da gravidez, é possível que, em relação à eutanásia e ao suicídio assistido, também observemos a mesma tendência”, conclui Rachel Aisengart Menezes.

Na análise das especialistas, o princípio da qualidade de vida e da inserção social da pessoa é o vértice que une as questões da ortotanásia e do aborto. “Os gregos usavam dois termos para designar vida: zoe e bios. Zoe era a vida civil, a vida em sociedade. Isso é muito interessante, porque quando se valoriza a sacralidade da vida em detrimento de sua qualidade – a bios em lugar da zoe - e considera-se a vida por si só como sagrada, que deve ser preservada acima de tudo, decisões como a de manter vivas pessoas como a Terri Schiavo, no estado em que for, são tomadas”, assinala Miriam.

O caso de Terri Schiavo propiciou uma das mais polêmicas disputas judiciais nos Estados Unidos, envolvendo seus pais – Bob e Mary Schindler – e seu marido, Michael Schiavo, que afirmava que a mulher declarara repetidas vezes – antes de entrar em estado vegetativo – que não gostaria que sua vida fosse mantida artificialmente. Além disso, ele defendia a posição dos médicos que sustentavam que o estado de saúde de Terri – vegetativo persistente – era irreversível. Entretanto, Bob e Mary Schindler afirmavam que ela teria um estado menos grave de dano cerebral, denominado "estado de consciência mínima", e defenderam sua sobrevivência até o momento em que o tubo que a alimentava foi retirado, em março de 2005, quando apelaram pela última vez à Suprema Corte americana, que rejeitou a revisão do caso.

Além de Terri, ficaram famosos os casos do tetraplégico australiano Christian Rossiter, de 49 anos, que em agosto de 2009 conquistou no tribunal o direito de recusar a alimentação e os medicamentos para poder morrer, e do espanhol Ramón Sampedro, que permaneceu tetraplégico por 29 anos e solicitou à justiça o direito de morrer, por não suportar mais viver. “São casos de pedido de pessoas lúcidas, conscientes, sem movimentação corporal, que referiram que essa vida não tem sentido, não tem dignidade”, observa Rachel Aisengart Menezes.

As especialistas lembram que, também no caso do aborto, se apresenta a pergunta sobre a qualidade de vida do futuro bebê e da mulher. “Se considerarmos o que é qualidade de vida e que isso deve se sobrepor à vida biológica em qualquer circunstância, já temos um problema resolvido. Resta apenas saber quem vai decidir. São duas questões. A primeira é escolher a qualidade de vida como um critério e, depois, quem vai arbitrar sobre a questão. Não se pode pensar nesse tema sem pensar na autonomia”, observa Miriam Ventura.

Como e quem deve garantir a autonomia da pessoa?

Segundo a pesquisadora, garantir a autonomia plena da pessoa é o grande dilema e o maior desafio, na discussão ética e legal tanto da ortotanásia quanto do aborto voluntário.

“Penso que caminhamos para uma flexibilização do direito de decidir sobre esses aspectos da vida, mas ainda é central a tutela da instituição médica. No Brasil outro aspecto relevante na discussão do aborto voluntário é o direito da mulher não só de decidir sobre a interrupção, mas também o dever do Estado de garantir o acesso ao abortamento. Neste sentido, defende-se não apenas a autonomia da mulher para decidir sobre a interrupção de sua gravidez, autorizando legalmente o procedimento, mas também incluir o procedimento no sistema público de saúde, permitindo o acesso a todas as mulheres. O exemplo norte-americano é interessante: a Suprema Corte dos Estados Unidos fundamentou a decisão sobre a legalidade do aborto restritamente no direito à privacidade, ou seja, como aspecto exclusivo de direito individual. Porém, em países como o Brasil, é necessário que o sistema público de saúde inclua a possibilidade de realização do procedimento, o que significa propiciar o exercício da autonomia. No Brasil, é difícil afastar da discussão do aborto voluntário a garantia de acesso ao procedimento no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), em face da nossa realidade social. A imensa vulnerabilidade das mulheres mais pobres acarreta uma redução da sua autonomia, o que deve ser corrigido pela lei. A mesma preocupação deve-se ter em relação à ortotanásia. Portanto, é preciso aprofundar a discussão sobre os critérios que serão admitidos como válidos para decidir acerca da suspensão de tratamento: os limites do sistema público de saúde ou a vontade da pessoa?”, questiona Miriam.

“O discurso em prol da ortotanásia é contrário aos excessos do uso de tecnologia, que acarreta um processo de morte doloroso, com muito sofrimento. Mas será que a grande camada da população brasileira, que nunca teve condição de usufruir de recursos tecnológicos de ponta, vai dizer: ’eu não quero, porque vai me trazer sofrimento?’”, observa Rachel.

A regulamentação da prática no Brasil indica, na análise das pesquisadoras, uma trajetória de flexibilização que, a médio e a longo prazos, pode produzir efeitos benéficos no que tange aos direitos civis, como o avanço em relação ao aborto voluntário.

“Em uma perspectiva histórica observa-se que esta flexibilização da norma em prol da autonomia dos sujeitos tem uma trajetória padrão: primeiramente retira-se a conduta do âmbito penal – deixam de ser criminalizados a ortotanásia e o aborto voluntários, por exemplo – mas a lei estabelece uma tutela da medicina para o exercício da autonomia da pessoa. Finalmente, num segundo momento, a autonomia individual é priorizada e a lei acolhe a simples decisão da pessoa sem justificação médica, como um direito civil de liberdade. Tanto no caso da ortotanásia quanto do aborto estamos ainda no estágio de mediação da norma médica, considerando o fundamento principal do direito à saúde, e, neste sentido, as questões se aproximam”, destaca Miriam.

Tudo isso nos leva a concluir que vida e morte não são propriamente conceitos científicos, mas categorias políticas. O conceito científico de morte, por exemplo, varia ao longo do tempo. No mundo ocidental houve uma mudança de critério: antes, a morte era definida como a parada de batimentos cardíacos e movimentos respiratórios. Atualmente também é válido o conceito de morte cerebral (ou encefálica), a partir da definição por uma comissão que se reuniu nos Estados Unidos no final da década de 1960. A partir dessa revisão, criou-se um novo estatuto de pessoa e de vida, no qual a identidade pessoal está centrada na mente, na função cerebral ou encefálica. Em última instância, trata-se da primazia da consciência e da autonomia do indivíduo.

Publicada em: 15/12/2010

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