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“Fazer o quê?”
Em palestra no CLAM, em outubro de 2008, o psicólogo norte-americano James T. Sears, professor do programa on line de mestrado e doutorado em Educação da Penn State University (EUA), examinou pesquisas sobre o tema da violência psicológica e física exercida sistematicamente por alunos sobre outros alunos nas escolas, quando esta é relacionada à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. “Se casos de bullying acontecem nas escolas muito mais frequentemente do que imaginamos, uma parte significativa desses casos é de bullying homofóbico”, sustentou o pesquisador. Jefferson Lessa mora em um bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Identifica-se como um gay de meia-idade. Em texto-desabafo publicado na edição de domingo do jornal O GLOBO (Ed. 18/07/2010), afirma estar sendo vítima dessa mesma violência psicológica de forma sistemática, mas não na escola, e sim em sua vizinhança. Abaixo selecionamos alguns trechos do texto publicado pelo jornal: “Na semana em que a Argentina aprova o casamento gay, peço licença para relatar uma historinha banal. Moro num bairro aprazível e ‘tranquilo’, sonho de consumo de dez entre dez cariocas. (...) De um tempo para cá, por motivos que me são alheios, alguns playboys deram de gritar ‘veaaaaaado!!!’ quando me veem na rua. Outro dia, derrubaram minha pasta no chão. Numa noite anterior, rolou um inesperado banho de uísque com Redbull no casaco novo... Depois disso, a calçada ficou mais longa que uma maratona. Chegar à varanda torna-se uma decisão pesada, difícil de tomar. A pasta, o cheiro do uísque com Redbull... Difícil. Como vocês podem ver, trata-se de uma história de bullying, a palavra do momento. Seria só mais uma, não fosse o caso de atingir um certo cara no auge da meia-idade. Eu. Nunca havia passado por isso antes. E não pretendia experimentar agora. Mas aconteceu — fazer o quê? Penso em várias ‘soluções’. A mais radical é mudar de bairro. Deixar para trás uma casa que adoro e que montei aos poucos, no ritmo que o salário aguado permitiu. Deixar para trás, também, um prédio no qual fiz amigos. É uma ‘solução’ penosa e triste, creio. Faz com que eu me sinta covarde, pequeno, sujo, miserável. A outra ‘solução’ é sugerida por amigos, que perguntam: ‘Por que você não denuncia? Por que não procura a polícia?’ Simplesmente porque não vivo dentro de um episódio de ‘Law & order: Special Victims Unit’, a genial série americana que ficcionaliza o cotidiano da unidade de elite da polícia novaiorquina especializada na investigação de crimes de natureza sexual. Se eu tivesse a certeza de que meu ‘caso’ seria tratado pelos detetives Stabler e Benson, correria para a delegacia mais próxima. Na maior confiança. Como todos sabemos, não é bem o caso por aqui”. Segundo James Sears, além da psicologia do agressor, o bullying não é apenas uma conduta individual anti-social, mas é sustentado em opiniões amplamente difundidas e se trata de um mecanismo chave na reprodução de idéias preconceituosas sobre o gênero e a sexualidade. “Quem mais sofre bullying são as pessoas que se apresentam como desviantes em termos de sexualidade”, afirmou o pesquisador. Sears destacou que pesquisas feitas em diferentes países mostram padrões similares ao de um estudo realizado no Brasil no qual um em cada sete alunos afirmou preferir não ter um colega de classe homossexual. Para o pesquisador norte-americano, “o bullying não deve ser entendido como algo necessariamente físico”. De modo análogo aos xingamentos do qual o colunista do Globo foi vítima, “a pichação reforça a ideia de que o lugar público é um espaço heterossexual e que ninguém deve se comportar de maneira diferente em relação à sexualidade. Ao deixar que a pichação homofóbica permaneça em suas instalações, como nos banheiros masculino e feminino, a escola acaba por ensinar a heterossexualidade e por reforçar a heterodoxia sexual e de gênero. O recado serve para demarcar um território de tolerância para a homofobia”, ressaltou Sears. “Fazer o que?”, questiona-se em certa altura Jefferson Lessa. O problema enfrentado por Lessa – e por muitos – chega ao conhecimento público uma semana depois de o governo do Rio de Janeiro ter inaugurado o mais importante produto do festejado programa Rio sem Homofobia: o Centro de Referência e Promoção da Cidadania LGBT, local onde a população de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans poderão encontrar atendimento legal e psico-social (o Centro conta com advogados, psicólogos e assistentes sociais) quando vítimas de discriminação e violência (seja ela verbal ou física). Projeto talvez até superior a um ‘Law & order: Special Victims Unit’. Além disso, a população LGBT do Rio de Janeiro também conta atualmente com mecanismos de denúncia inexistentes em um passado recente: a categoria “homofobia” pode também aparecer nos boletins de ocorrência (B.O.) da polícia civil como motivação para qualquer crime. A medida também faz parte do pacote de iniciativas inaugurado pelo programa Rio sem Homofobia. O comportamento dos “playboys” citados no texto de Lessa não chega a surpreender pois, sabe-se, se a cidade do Rio de Janeiro – embora conhecida mundialmente como gay friendly – precisa de um programa chamado “Rio sem Homofobia” é por que a discriminação e o preconceito por orientação sexual persistem. Mas como interpretar a prática do bullying quando esta não acontece exatamente no ambiente escolar, para onde aponta a grande maioria das atenções e estudos concernentes ao problema? Há cinco anos, os resultados da Pesquisa Política, Direitos, Violência e Homossexualidade (CLAM/CESeC), realizada durante a 9ª Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro, trouxeram à tona dados impressionantes em relação à discriminação e a violência sofridas por gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros no ambiente familiar, na escola, no trabalho e em locais públicos, como a experimentada por Lessa. Um dado: 22% dos respondentes tinham entre 30 e 39 anos, enquanto 19,4% revelaram idade superior a 40, possivelmente a faixa etária em que Lessa se enquadra. De acordo com a pesquisa, o círculo de amigos e vizinhos era citado como o campeão em discriminação – 33,5% dos gays, lésbicas, pessoas trans e bissexuais entrevistados disseram ter sido discriminados neste ambiente, enquanto 27% apontaram o ambiente familiar. A discriminação nas escolas e universidades, por parte de professores e colegas vinha logo em seguida, com uma incidência de 26,8%. Os ambientes religiosos (20,6%) e de lazer (18%) vinham num segundo bloco, seguidos pelas discriminações no ambiente de trabalho (11,7%) e no atendimento na área de saúde (11,1%). Entretanto, foram as agressões verbais citadas como as que mais atingem a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e trans – o estudo indicou uma incidência de 55,4%, o que significa que mais da metade dos entrevistados já tinham sido vítimas de xingamentos, humilhações verbais ou ameaças. Para os autores da pesquisa, as agressões verbais são expressivas da “disseminação cultural da homofobia”. “Aparentemente, as sanções sociais e legais para ofensas de natureza sexual não têm sido suficientemente fortes para impedirem a homofobia que se generaliza através da palavra”, ressaltam em um trecho do relatório. Curiosamente, o nível alarmante de ofensas verbais convive com um ambiente de tolerância e valorização da homossexualidade, no momento em que a cidade acolhe e apóia paradas que reúnem milhares de gays, lésbicas e travestis, e inaugura aparelhos do Estado protetivos dos direitos dessa população. O maior problema, no entanto, também apontado pelo estudo do CLAM/CESeC, era o desconhecimento do próprio segmento em relação aos seus direitos. Ao serem perguntados sobre leis que beneficiam os (as) homossexuais, entre os participantes, 50.1% disseram conhecer a existência de lei, aprovada ou em discussão, no Rio ou no Brasil, que proteja os homossexuais. No entanto, uma proporção quase idêntica (49.9%) disse não conhecer qualquer legislação. A legislação sobre parceria ou união civil foi a mais lembrada (27.7%) entre as 206 menções espontâneas, embora esta nunca tenha sequer sido votada no país. Essa falta de informação sobre serviços a que procurar parece ser um dos maiores desafios do movimento LGBT: alcançar o segmento de forma eqüitativa e fazer chegar suas informações a esta parcela da população, para que esta tome conhecimento dos serviços existentes que têm à sua disposição. A visibilidade de conquistas locais, como a inauguração do Centro de Referência de Promoção da Cidadania LGBT, tem de ser equivalente à disseminação de informações como a da aprovação do matrimônio gay pelo Senado argentino. Publicada em: 21/07/2010 |