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Sexualidades encarceradas

Da sexualidade impedida, na década de 1940, à sexualidade autorizada nos dias correntes. Nesse fio de história encontramos, em certa medida, as mudanças políticas e institucionais esboçadas e organizadas para dar conta do encarceramento das mulheres no Brasil. É uma evolução que ajuda a entender como a questão do gênero é encarada atualmente numa área da sociedade em que o estigma ainda é uma linguagem da moda.

A partir desse contexto e para melhor entendê-lo, a pesquisadora Fabíola Cordeiro, do CLAM, iniciou uma pesquisa com egressas de prisões cariocas. Intitulado “Sexualidades femininas no cárcere: um estudo sobre gênero e disciplinas no universo prisional”, o estudo, ainda em andamento, inicia sua abordagem na década de 1940.

O Estado Novo (1937-1940) de Getúlio Vargas instituiu uma reforma penal na esteira de um processo em que o poder centralizara-se nas mãos do Estado. Além disso, ganhava força o discurso de que as regras penais deveriam ser individualizadas e humanizadas. O foco deveria ser deslocado do crime para o criminoso.

Antes encarceradas em casas de detenção predominantemente masculinas, elas passam a ser aprisionadas em presídios femininos. O gênero, naquele período, adquire novo papel: a mulher torna-se, em razão da sua gradativa entrada no mercado de trabalho, cada vez mais presente na vida pública.

A polícia intensifica a perseguição contra prostitutas, “os corpos desviantes” ficam na mira do Estado e, naturalmente, conceitos de natureza moral como “decência” e de cunho médico como saúde pública se consolidam num clima de “cruzada moral”. “Quando eu comecei a ler sobre o assunto, me chamou a atenção como a sexualidade aparecia como um lócus privilegiado de debate, de intervenção”, afirma Fabíola.

Vistas preferencialmente como menos inclinas ao crime e mais como motivadoras de delitos, as mulheres encarceradas são encaminhadas, na década de 1940, sob a custódia de freiras. A proposta é evidente e não poderia haver categoria social mais adequada senão esta. “O projeto visava recuperar a santidade dessas mulheres. Se os homens precisam ser punidos para disciplinar seus atos, com as mulheres a disciplina passa pela exorcização dos pecados, uma espécie de purificação pela espiritualidade”, argumenta Fabíola, acrescentando que as atividades com as quais se ocupavam as detentas eram ligadas às tarefas de casa.

A primeira prisão feminina refletia na sua própria arquitetura este paradigma: as janelas, por exemplo, não eram gradeadas e sim preenchidas com basculantes. O cenário, ressalta a pesquisadora, é o de um internato.

O corpo feminino, naquele período, se destacava como objeto cuja vigilância era indispensável. A política carcerária, na época, “tinha que conter e impedir qualquer forma de expressão da sexualidade dentro daquele espaço, já que as teorias acerca da criminalidade feminina elencavam a sexualidade problemática da mulher como um dos elementos causais de sua entrada na criminalidade”, diz Fabíola Cordeiro.

As freiras, naquele contexto, passaram a atuar em favor da individualização das celas: assim, não haveria o “risco” de as detentas manterem relações sexuais entre si. Uma marca daquele período, e que se preserva até os dias atuais, é a associação entre criminalidade feminina e sexualidades desviantes. Ou seja, a “mulher desviante” era identificada como aquela que cometeu delitos tais como aborto ou infanticídio. Enquanto a “verdadeira criminosa” era identificada com a homicídia passional e, em especial, com a figura da prostituta e suas doenças venéreas. “Naquele momento, havia uma luta muito grande contra a sífilis. Passa a haver perseguição contra as casas de prostituição, e as prostitutas aumentam a população carcerária”, relata a pesquisadora.

Nos anos 1950, as freiras perdem o posto de comando na administração penitenciária, uma vez que são consideradas ineficientes para conter e lidar com as “subversões das internas”.

Nas décadas seguintes, no entanto, a sexualidade das internas se preservou como um ponto central de disciplinarização e gerenciamento por parte da esfera institucional. O ambiente das prisões manteve-se sob vigilância contínua, voltada para disciplinar os corpos das presas.

Na década de 1980 inicia-se em intensa movimentação política e social. O país reabria-se lentamente às normas democráticas. O regime militar, condenado, desemboca em inúmeras transformações. Dentre elas, aparece a Lei de Execuções Penais (LEP), cujas diretrizes ampliam os direitos dos presos.

As penas adquirem viés mais individualizado para, segundo Fabíola, se conhecer melhor as peculiaridades de cada corpo e mente. Dessa maneira, as penas seriam estabelecidas segundo critérios menos impessoais.

Se por um lado, a reforma trouxe avanços no sentido de aprimorar as penas, por outro, implicou no fortalecimento dos agentes penitenciários e de seu controle sobre o destino dos presos. Uma conseqüência foi a intensificação das relações clientelísticas na prisão.

É também com a redemocratização do país que as ONGs de Direitos Humanos e entidades religiosas (católicas e evangélicas) se tornaram mais presentes dentro das instituições carcerárias. Amplia-se assim a demanda social por maior humanização do sistema prisional.

O debate sobre a visita íntima ganha força nesse período em articulação com um discurso sobre família e conjugalidade; ou seja, ela é entendida como uma maneira de as mulheres preservarem os laços familiares durante o encarceramento. “O projeto conjugal-familiar ainda é pensado como a possibilidade de salvação para as mulheres envolvidas na ou com a criminalidade”, diz a pesquisadora. O teor homofóbico esteve presente tanto no subtexto do debate sobre visita íntima, como serviu, também, para reiterar o estereótipo de que a família é o princípio ativo da “mulher honesta”.

As próprias regras para regular as visitas são emblemáticas. É preciso um parceiro estável heterossexual. Há raríssimos casos de autorizações judiciais para encontro entre parceiros do mesmo sexo. Além disso, em se tratando dos presídios femininos, a questão das visitas é peculiar, como sublinha Fabíola, “A maioria das mulheres, quando presas, perdem o parceiro. São poucas as que recebem visitas de parentes”.

A homofobia se expressa ainda de variadas formas no cotidiano da prisão. E se traduz nas relações de trabalho e pessoais. Nas conversas com ex-detentas, Fabíola encontrou representações e práticas semelhantes àquelas que orientaram as primeiras políticas carcerárias para mulheres.

A correlação entre sexualidade desviante e criminalidade feminina reforça a tendência a identificar as “verdadeiras criminosas” com as presas que se envolvem em práticas homoeróticas e, sobretudo, as que subvertem os padrões de gênero. Essa perspectiva envolve o estabelecimento ainda de níveis de distinção entre as internas. Além disso, os conflitos e violências praticadas na prisão tendem a ser associados a essas mulheres. É um estigma que, segundo a pesquisadora, circula tanto entre as próprias ex-detentas como entre funcionários de estabelecimentos prisionais.

Na relação clientelista que se forma entre os agentes e as mulheres, nota-se uma segregação na rotina de trabalho. Regalias (como usar roupas de cores não permitidas às demais internas, receber a visita de amigos, etc.) e as ocupações mais valorizadas (trabalho em cooperativas, fábricas ou na administração da cadeia) são destinadas sobretudo para aquelas que assumem a postura de presas modelo; com freqüência, mulheres que se apresentam como mães de família ou jovens pobres que entraram para o crime “iludidas” por amor ou pelo dinheiro.

Há também que se considerar o impacto da atuação de grupos religiosos dentro das prisões para disciplinar e “pacificar” o convívio. “Nesse contexto, surge uma figura de forte teor simbólico: a crente, que é moralmente valorizada por estar “de fato” em vias de recuperação. As chamadas “sapatões” e “lésbicas” aparecem, com freqüência, nesse jogo simbólico como as criminosas irrecuperáveis.

Fabíola cita que no depoimento de muitas de suas entrevistadas, as lésbicas e as “sapatões” são taxadas de preguiçosas e indisciplinadas, acusadas de não gostarem do trabalho, de arrumarem confusão ou de serem viciadas em drogas. “As presas vão construindo uma série de signos de status que vão diferenciá-las numa busca para tentar neutralizar o estigma de criminosas. E, conforme se constrói a imagem de mulher recuperada, em oposição aparecem as que seriam as ‘verdadeiras’ criminosas”, afirma.

Por assumirem certo status, estas mulheres adquirem privilégios como celas melhores. Com interesses compartilhados com os funcionários, elas auxiliam no papel de sentinelas da prisão. “A religião é um mecanismo de adaptação à vida na cadeia, uma espécie de extensão do poder disciplinar. Ao mesmo tempo, ela está em confronto com outros mecanismos que funcionam de adaptação, como o estabelecimento de alianças homoeróticas”, afirma Fabíola.

O discurso dos funcionários também é permeado pelo estigma da homossexualidade. “Em conversas informais com pessoas que já trabalharam em presídios, também aparece a relação entre presas problemáticas e orientação sexual”, relata.

Fabíola lamenta a raridade de campanhas para enfrentar essa situação. “Poucas ONGs tentam valorizar a auto-estima das chamadas lésbicas e sapatões”, conta, ressaltando a dupla criminalização que essas mulheres enfrentam.

Houve avanços, como enfatiza Fabíola. A visita íntima já foi assimilada e desvinculou-se da noção de privilégio ou de “sem-vergonhice”; além disso, trocas de afeto entre internas do mesmo sexo já não são alvo de sanções disciplinares violentas como há 20 anos. Mas, “a visita íntima ainda tende a não ser tratada como um direito e está longe de ser democratizada. Às homossexuais, ainda falta vencer barreiras mais internas para que, do lado de fora, suas parceiras tenham permissão para entrar”, conclui.

Publicada em: 19/01/2010

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