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Saúde do Homem: questões e desafios

Em 2009, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Promoção e Atenção à Saúde do Homem. O objetivo da nova política, segundo o ministro José Gomes Temporão, não é apenas aumentar a expectativa de vida da população masculina, mas sobretudo promover uma mudança mais profunda na maneira como os homens se relacionam com sua própria saúde. A idéia é fazer com que homens entre 20 e 59 anos procurem preventivamente um médico ao menos uma vez por ano.

Em entrevista concedida ao jornal carioca O Globo (ed. 27/08/2009), o secretário de atenção à saúde do MS, Alberto Beltrame, deu a medida das dificuldades enfrentadas pela iniciativa. “Os homens são mais resistentes a procurar ajuda. Primeiro, porque têm medo de descobrir a doença, por serem provedores da família. E, depois, têm o pensamento de que nunca vão adoecer.” E enfatizou: “Eles foram educados para não chorar e para manter a couraça de que são machos”. Aí o desafio: mudar os hábitos de uma população inteira, ou pelo menos de boa parte dela, não é tarefa das mais fáceis. Mas é exatamente o que o governo parece decidido a fazer. Até 2011, serão investidos mais de R$ 600 milhões na nova política.

Segundo dados do Ministério da Saúde, 68% das mortes registradas entre 20 e 59 anos no Brasil são de indivíduos do sexo masculino – ou seja, a cada três óbitos de pessoas em idade adulta, aproximadamente dois são de homens (incluindo aí as mortes por causas externas, como as causadas pela violência). Além disso, estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a expectativa de vida dos homens (69,8 anos em média) é 7,6 anos menor do que a das mulheres.

Pesquisas preliminares apontaram que cerca de 75% das enfermidades que atingem homens adultos concentram-se em cinco grandes áreas da medicina: cardiologia, urologia, saúde mental, gastroenterologia e pneumologia. Por esta razão, o Ministério da Saúde realizou em 2008 uma série de seminários com as Sociedades Médicas representativas destas áreas, especialistas, pesquisadores acadêmicos e profissionais de saúde, a fim de estabelecer um consenso sobre quais as medidas mais importantes a serem implementadas.

Embora os argumentos principais na criação da nova política sejam as taxas de morbimortalidade masculina e o fato de os homens pouco procurarem os serviços de atenção básica, o pesquisador Romeu Gomes, doutor em Saúde Pública, professor de Antropologia e Saúde e Pesquisa Qualitativa em Saúde do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), faz algumas críticas sobre a pouca ênfase dada às questões de gênero. “A saúde do homem deve ser destacada não só para se desenhar o perfil epidemiológico da morbimortalidade masculina, mas também para que se percebam os aspectos culturais que comprometem sua saúde. O predomínio é a análise do homem como uma variável de sexo, em perfis epidemiológicos. Certos quadros de agravos à saúde masculina podem ser melhor compreendidos a partir da forma como homens são socializados e do entendimento como são estabelecidas as relações entre os gêneros estruturadas por modelos culturais”, avalia.

Segundo ele, os homens pouco procuram os serviços de saúde por vários motivos: “Os cuidados em geral são percebidos como femininos, e não masculinos; os homens costumam ser vistos como fortes e invencíveis e, por isso, só buscam ajuda quando os problemas se agravam, quando não conseguem trabalhar; os serviços de atenção básica costumam ser vistos como lugar de crianças, mulheres e idosos; e as ações de atenção básica voltadas para os segmentos masculinos ainda são tímidas”, destaca.

Para alguns autores, a discussão sobre impotência sexual – a transformação da impotência em disfunção erétil – e a atuação da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) foram peças fundamentais na construção da nova política de atenção à saúde do homem. Em julho de 2008, a SBU lançou uma campanha cujo foco era a disfunção erétil. Como justificativa, alegou que a disfunção erétil seria uma porta de entrada privilegiada para a discussão sobre a saúde do homem, porque esta freqüentemente encontra-se associada a outras patologias, e citou dados do Ministério da Saúde que sugerem o descaso dos homens em relação a sua própria saúde. A importância da sexualidade na construção da nova política se espelha também no fato de que a coordenação da Área Técnica de Saúde do Homem, criada em março daquele ano, seria dada inicialmente ao sexólogo Ricardo Cavalcanti, um dos fundadores da moderna sexologia brasileira.

De acordo com a pesquisadora Fabíola Rohden (IMS/UERJ), é preciso observar a existência de dois processos paralelos ao longo do desenvolvimento da nova política. Trata-se, diz ela, “de uma conjunção entre o esforço no sentido de integrar a população masculina ao Sistema Único de Saúde (SUS), através da conscientização e da melhoria da qualidade nos atendimentos, e a construção do diagnóstico de disfunção sexual, centrada sobretudo na idéia de disfunção erétil. “Até os anos 80, a categoria que se usava era a de impotência, categoria esta que viria a ser substituída pela de ‘disfunção sexual’. A categoria ‘impotência’ assinalava um estigma, como um carimbo que mutila a identidade do homem, ao passo que a categoria ‘disfunção sexual’ reflete uma condição passageira, que qualquer homem poderia ter em algum momento de sua vida, e depois superá-la. Se, por um lado, esta mudança tem um aspecto positivo, pois permite que os homens falem mais abertamente sobre os entraves à sua sexualidade, por outro, favorece o aumento do consumo de medicamentos, muitas vezes sem a indicação médica adequada”, assinala Fabíola.

No artigo “A política de atenção à saúde do homem no Brasil: os paradoxos da medicalização do corpo masculino”, publicado na revista Physis (Volume 19, número 3/2009), os pesquisadores Sérgio Carrara, Jane Russo e Livi Faro examinam a estratégia de se utilizar a disfunção erétil como via privilegiada para a discussão da saúde do homem, conforme proposto na campanha da SBU. Segundo eles, esta estratégia joga com uma ambigüidade, ou um paradoxo: deve persuadir os homens de que eles são afinal frágeis – ou seja, deve veicular a idéia de uma masculinidade vulnerável – para convencê-los a procurar assistência médica que, centrada na potência erétil, acaba por reafirmar a concepção hegemônica de masculinidade. Neste sentido, os autores assinalam que, “ao centrar a felicidade do homem na potência sexual, vista como capacidade de obter uma ereção, a campanha acaba reforçando a centralidade dos valores que ela supostamente pretende combater”. Isto porque a idéia de virilidade é um dos fundamentos da masculinidade hegemônica, e se esta idéia está no cerne da campanha, então a longo prazo ela acabará sendo fortalecida. Assim, na análise dos pesquisadores, no âmbito dessa estrégia o “desempoderamento” momentâneo da condição masculina não ajuda a solapar a concepção hegemônica de masculinidade, muito ao contrário, só faz reforçá-la.

De qualquer forma, é preciso ter em mente que, como assinala Jorge Lyra, pesquisador do Instituto Papai, a escolha dos homens como sujeitos de uma política pública voltada à saúde significa um “desdobramento e um avanço a partir das conquistas históricas dos movimentos feminista, gay e lésbico, e das inúmeras lições aprendidas”. Ainda assim, segundo ele, há muito trabalho a ser feito. “Se analisarmos as proposições no documento [da Política Nacional de Promoção e Atenção à Saúde do Homem], veremos que há um destaque nas questões de educação em saúde e ações que visam as transformações culturais, mas quando observamos as propostas sendo implementadas há uma clara reificação e manutenção de valores que não questionam o machismo e o patriarcado vigente em nossa sociedade. Essa abordagem pode ser verificada exatamente na idéia dessa conexão entre potência sexual, as questões de saúde e o caminho da medicalização dos corpos masculinos semelhante ao que fizeram com as mulheres”.

Lyra nota que, no caso dos homens, não há nenhum movimento social ou organização que consiga efetivamente opor resistência ao poder e influência do lobby das indústrias farmacêuticas. E isso, segundo ele, é algo com o qual nós deveríamos nos preocupar, pois “questionar os valores que sustentam o machismo e o patriarcado é fundamental para abrir possibilidades para uma efetiva transformação social”, salienta.

Para a pesquisadora da USP Lilia Schraiber, a saúde sexual tem sido negligenciada como problema que deva ser seriamente enfrentado em articulação com problemas mais reconhecidos pelas práticas médica ou sanitária como do campo da saúde, tais como as doenças cardiovasculares, os cânceres e as doenças do aparelho digestivo e urinário. “O mais importante é tomar-se o cuidado de, ao se introduzir uma questão como a da saúde sexual, que ela se articule com as demais questões de saúde e das doenças, que se tente efetivamente uma abordagem integral, seja no plano clínico, seja no plano das prevenções e promoções de saúde, e não uma abordagem cindida em especializações que isolem ou fragmentem demandas por saúde”, ressalta a pesquisadora.

A questão da saúde do homem na Região

Situação semelhante a do Brasil pode ser verificada em países como a Colômbia e o Peru. Na Colômbia, não há notícia de um programa oficial do governo em relação a saúde do homem, excetuando eventuais campanhas de prevenção à AIDS – o que vem merecendo a atenção de pesquisadores como Mara Viveros e Franklin Gil. No artigo “De las desigualdades sociales a las diferencias culturales. Género, “raza” y etnicidad en la salud sexual y reproductiva en Colombia“, eles afirmam que apesar de o motivo principal da consulta deste número cada vez maior de homens esteja relacionado a problemas de impotência ou ao desempenho sexual – o que reforça as convenções de gênero –, a crescente afluência de homens aos serviços de Saúde Sexual e Reprodutiva constitui um avanço em si mesmo (embora as mulheres continuem sendo suas principais usuárias). Sua presença em serviços de saúde não é um indicador de maior relevância em práticas que busquem diminuir as disparidades de gênero existentes em matéria de SSR, senão outra evidência da perpetuação dos papéis de gênero.

No Peru, o quadro se repete: quase não há políticas públicas destinadas à saúde do homem. As campanhas existentes são feitas basicamente por ONGs, e também têm como foco a prevenção da AIDS e o planejamento familiar. Desde 2007, o Instituto Peruano de Paternidade Responsável (INPPARES) desenvolve um programa com ênfase na saúde sexual e reprodutiva do homem. Segundo o psicólogo Fernando Cisneros Dávila, do INPPARES, o paradigma de masculinidade peruano não promove nos homens o cuidado com sua própria saúde: também lá eles foram socializados de modo a acreditarem que são fortes por natureza. “Eles preferem chegar a um estado de mal estar extremo antes de procurar ajuda médica, e no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, o imperativo que sentem em demonstrar permanentemente sua masculinidade os leva a adotar práticas sexuais que aumentam o risco de contrair infecções de transmissão sexual e AIDS, problemas que também acabam afetando suas parceiras”, afirma o pesquisador.

Cisneros também destaca a necessidade das políticas públicas de adotarem um posicionamento distinto do que se vê atualmente, de modo a enxergar os homens como seres humanos ao mesmo tempo fortes e frágeis, com necessidades específicas: “Isto implica levar em conta a forma através da qual os homens construíram sua masculinidade, e lhes dar oportunidade para questionar e remover estereótipos que limitam sua liberdade de expressar livremente seus afetos, de revelar suas inseguranças e temores e de cuidar de sua própria saúde, desenvolvendo práticas preventivas sem a interferência de um falso sentido de invulnerabilidade”.

Publicada em: 06/01/2010

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