O Seminário Direitos Reprodutivos e o Sistema Judiciário Brasileiro, realizado pela Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) do CEBRAP nos dias 9 e 10 de setembro, em São Paulo, debateu o tratamento dado ao tema do aborto nos tribunais brasileiros, as principais transformações no cenário dos direitos reprodutivos no Brasil e os novos desafios que se impõem à agenda nacional. Foram discutidas as dificuldades no acesso à justiça e as novas possibilidades em termos das estratégias de atuação dos movimentos sociais e das práticas de advocacy no país.
A socióloga e cientista política Jacqueline Pitanguy (CEPIA) enfatizou a existência no país de jurisprudência bastante significativa no tocante às autorizações judiciais à interrupção da gravidez em casos de anencefalia e má formação fetal grave: “Estima-se que, entre os anos de 1999 e 2008, cerca de 5.000 alvarás judiciais foram concedidos”, afirmou. Essas ações não foram, contudo, resultado de uma política entendida como ação coletiva e plural. Apesar disso, para Jacqueline, esse conjunto de autorizações judiciais ao evidenciar a prevalência do princípio ético da beneficiência sob a interpretação estritamente legal, oferece subsídios de conteúdo a partir dos quais é possível elaborar estratégias de advocacy em relação à descriminalização dessa prática.
Uma das lideranças mais atuantes no longo processo de advocacy pelo direito ao aborto em casos de anencefalia e má formação fetal grave no Brasil – atualmente na iminência de ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF) – Jacqueline destacou três argumentos que corroboram a descriminalização da prática: o direito à interrupção voluntária da gravidez nesses casos é um direito de escolha, não uma imposição, o que demonstra seu caráter democrático. Em segundo lugar, a criminalização do aborto por anencefalia e má formação grave é um desrespeito aos direitos das mulheres, por privilegiar o suposto direito de um futuro ser em detrimento do direito – inclusive à saúde mental – de uma cidadã plenamente capaz de tomar decisões. Por fim, Jacqueline fez referência à lei n.º 9.434 de 1997, que rege os transplantes de órgãos e define como critério para declaração de óbito a morte encefálica, para demonstrar a incongruência de se discutir o mérito da questão, na medida em que a anencefalia é comprovadamente morte encefálica.
O advogado Pedro Abramovay, Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, foi além e defendeu que é preciso introduzir no debate brasileiro sobre aborto a questão da inconstitucionalidade de sua caracterização como crime, a exemplo dos Estados Unidos. Ele destacou que as doutrinas constitucionais de todos os países que influenciam o modo como temas variados são tratados nos tribunais são unânimes acerca da necessidade de se garantir a liberdade e a autonomia das mulheres na ponderação entre a vida do feto e da mulher.
Além disso, para Pedro, há indícios consistentes no direito brasileiro que evidenciam que o que está em jogo na criminalização do aborto não é o direito do feto à vida, mas sim, a honra das mulheres e, por extensão, a de suas famílias e parceiros. Pedro recordou que, de acordo com o código civil brasileiro, a vida começa a partir do nascimento e que a própria inclusão do aborto no código penal, na década de 1940, foi uma iniciativa de proteção à família. A discussão naquele momento era pautada pela questão da honra, não pela da proteção à vida. Pedro afirmou que é fundamental adequar o código penal às transformações sociais ocorridas nos últimos 60 anos.
Outro ponto contemplado nos dois dias de debate foi a importância da defesa da laicidade do Estado para se garantir que a formulação e a implementação de políticas públicas sejam direcionadas pelos interesses e bem-estar da população em geral e não pautadas pelas crenças de uma parcela da sociedade. O juiz Roberto Lorea (TJRS) defendeu que, em uma sociedade democrática, não há lugar para argumentos religiosos no âmbito dos processos judiciais.
Sônia Correa (SPW/ABIA) ressaltou que é preciso expandir o debate sobre o aborto na sociedade brasileira. Tal avaliação é reforçada pelos resultados de pesquisas recentes de opinião, que apontam um recuo na aprovação dos brasileiros ao aborto por decisão e autonomia da mulher: “Nos anos 90, 30% da opinião pública era favorável e hoje, as últimas pesquisas indicam que apenas 10% da população é favorável”. Segundo a pesquisadora, as pesquisas demonstram, contudo, um razoável consenso no país em torno da manutenção da lei relativa ao aborto em casos de estupro e ao predomínio da perspectiva favorável ao aborto nos casos de anencefalia. Apesar disso, Sônia afirma que ainda há necessidade de esclarecer à sociedade de que descriminalizar o aborto em casos de anencefalia e má formação fetal não significa torná-lo uma prática compulsória e, para ela, pouco tem sido feito nesse sentido.
Tamara Gonçalvez e Thais Lapa (CLADEM) apresentaram alguns dados da pesquisa Aborto e Religião nos Tribunais Brasileiros. A pesquisa analisou os casos de aborto que chegaram à segunda instância dos tribunais estaduais e superiores, entre os anos de 2001 e 2006, e quais os instrumentos jurídicos utilizados nesses casos para tentar assegurar os direitos das mulheres envolvidas. As pesquisadoras demonstraram que os processos judiciais envolvendo aborto por anencefalia e má formação fetal grave são marcados por uma contraposição – ainda mais acirrada do que nos casos de auto-aborto e aborto por terceiros – entre a reivindicação dos direitos do feto e a reivindicação dos direitos da mulher.
Em mais da metade dos casos de anencefalia e má formação fetal grave mapeados (54%) nos tribunais estaduais pela pesquisa foi dada autorização à mulher para que interrompesse a gestação. Já nos tribunais superiores, em 66% dos casos houve perda de objeto – em geral, pela morosidade do processo. Chama atenção no conjunto dos casos analisados, um episódio, em 2003, em que o recurso ao Habeas Corpus foi acionado por um padre, no Estado do Rio de Janeiro, em favor do feto. O processo se alongou nos tribunais superiores até que ocorreu a perda de objeto.
Durante o Seminário, Jacqueline Pitanguy e Albertina Costa (Fundação Carlos Chagas) realizaram o lançamento da campanha nacional As mulheres devem ter o direito de decidir pela interrupção da gravidez em caso de anencefalia, apoiada pela CEPIA e pelo Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM).