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A maternidade em situação limite

O filme O Aborto dos Outros, da diretora e roteirista Carla Gallo, acompanha o drama de mulheres que estavam prestes a interromper a gravidez em situações autorizadas por lei e depoimentos daquelas que recorreram a abortos clandestinos. O filme mostra os efeitos da criminalização para as mulheres e aponta a necessidade de revisão da lei brasileira. A produção ganhou menção honrosa no Festival É Tudo Verdade 2008 e participou da Mostra Paralela do 36º Festival de Gramado.

Carla Gallo lembra que, durante o processo de produção, os conflitos foram muitos: “Como tocar um assunto tão caro às mulheres, buscando profundidade, delicadeza e afastar a morbidez? Que caminho tomar para ajudar a romper a rotina de culpa e moralismo que o aborto estabelece? O ponto de partida foi perceber que em determinadas situações, para algumas mulheres, ter um filho pode representar um cativeiro. E buscar entender a complexidade dessa experiência feminina num universo onde a maternidade possui uma imagem idealizada. Fazer o filme foi uma lição profunda de responsabilidade, generosidade e auto-conhecimento", afirma a diretora.

Após três anos de pesquisas, Carla reuniu uma equipe para documentar por um período de cinco meses o drama de inúmeras mulheres que estavam prestes a interromper sua gravidez. Estas interrupções, autorizadas pela lei, enquadram-se nas únicas situações permitidas pelo Código Penal brasileiro: casos de estupro ou risco de vida para a mãe, além das situações, eventualmente autorizadas judicialmente, que dizem respeito às gestações em que uma má formação fetal compromete a sua sobrevivência fora do útero da mãe, como o caso dos anencéfalos, cuja autorização de interrupção está sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) atualmente.

Estreante na direção de longas-metragens, Carla Gallo registrou ainda depoimentos de outras mulheres que recorreram ao aborto clandestino, além de profissionais da área da saúde, em diferentes locais em São Paulo e no Rio de Janeiro. O filme acompanha, por exemplo, o caso de uma menina de 13 anos desde seu depoimento à assistente social relatando o abuso sexual que sofrera até a interrupção, detalhando toda a espera no quarto do hospital ao lado de sua mãe, bem como os procedimentos médicos efetuados. Outro caso mostrado no filme é o de uma mulher que está no sexto mês de gestação e cujo bebê tem problemas de má formação que não lhe dão chance de sobrevida após o nascimento.

As filmagens ocorreram em 4 hospitais públicos que possuem atendimento para casos previstos em lei, o “Programa de Aborto Legal”: Hospital Pérola Byington, Unifesp, Unicamp e Hospital do Jabaquara, todos em São Paulo. Além dessas instituições, foram colhidos depoimentos de mulheres e profissionais de saúde em diferentes locais no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Nos hospitais, as mulheres que dão entrada no Programa de Aborto Legal passam por um atendimento multidisciplinar que envolve assistentes sociais, psicólogos e ginecologistas. Durante esse processo elas contam a sua história e passam por uma bateria de exames. O pedido de aborto feito pela mulher pode ser autorizado ou negado, dependendo do conteúdo dessas informações e do cruzamento de dados feitos pelos diversos profissionais. O atendimento acontece inteiramente dentro dos hospitais e a decisão é tomada por um corpo médico especializado.

Nas gestações de má-formação fetal incompatível com a vida, o processo envolve autorização de um juiz. A partir do diagnóstico feito por um médico, a mulher que decide interromper a gestação precisa se dirigir a uma instituição jurídica com relatório médico detalhado e documentos que justifiquem seu pedido. Como este tipo de aborto não está legalizado, a decisão depende do juiz que irá avaliar o caso.

A maioria dos abortos no país acontece, no entanto, na clandestinidade: em casa, em clínicas ou com o auxílio de uma “mãe de anjo”. Três depoentes no documentário contam experiências em que recorreram a drogas abortivas ou ao auxílio dessa “profissional”.

O filme revela que 70 mil mulheres morrem por ano no mundo em função de aborto inseguro, e que no Brasil uma em cada quatro gestações é interrompida voluntariamente, totalizando mais de um milhão de abortos clandestinos por ano. E apenas recentemente os hospitais públicos do país começaram a cumprir uma lei de 1940, que legaliza o aborto para casos de gestações resultantes de estupro ou em casos em que a mulher corre risco de vida.

“A punitiva lei brasileira não impede na prática que mulheres realizem o aborto. É justamente esse o ponto nevrálgico da discussão: mulheres que decidam interromper sua gestação continuarão a fazê-lo, nas condições que encontrarem, com ou sem atendimento adequado. A dramática conseqüência da criminalização são os efeitos perversos para as mulheres, como o alto índice de mortalidade materna ou as graves seqüelas de procedimentos clandestinos, indicativos alarmantes de um dos maiores problemas de nosso país na área da saúde pública. Ser a favor da descriminalização não é ser a favor do aborto. Até porque ninguém é a favor do aborto. Da mesma forma, dizer-se contra o aborto é permitir a continuidade de uma situação descontrolada. Uma lei que identifique a questão do aborto como um problema de saúde pública e como parte integrante dos direitos da mulher pode ajudar a diminuir o número de abortos”, ressalva a diretora.

Carla Gallo lembra que os países que possuem leis restritivas são aqueles onde há um maior número de abortos. Na Holanda, por exemplo, onde o aborto é descriminalizado, ocorrem 0,53 abortos por 100 mulheres. No Brasil esse número sobe para 2,07.

“Essa diminuição dos números acontece também porque a legalização vem sempre acompanhada de normas médicas e de educação preventiva, que ajuda a impedir, inclusive, abortos de repetição”, diz ela.

Publicada em: 09/10/2008

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