Na capital do estado do Mato Grosso do Sul, cerca de duas mil mulheres foram indiciadas por prática de aborto, depois que uma clínica de planejamento familiar, que existia há 20 anos no centro de Campo Grande, foi fechada ao ser “estourada” pela polícia, após uma reportagem de TV. Algumas aceitaram prestar o serviço comunitário de cuidar de crianças em creches, para se verem livres do processo – a punição foi proposital, “para fazê-las refletir sobre a maternidade”, nas palavras do juiz encarregado do caso, Aluízio Pereira dos Santos. Na semana do Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe (28 de setembro), mulheres de todo o Brasil se encontraram na capital paulista para debater sobre o tema e participar de um ato público, que aconteceu na sexta-feira (26/9), em solidariedade às mulheres indiciadas no Mato Grosso do Sul.
Embora não seja o único – o Brasil vive uma onda de “estouros” de clínicas clandestinas que praticam aborto – o caso de Campo Grande levantou questões importantes, como a da ilegalidade da violação de prontuários médicos e da invasão da privacidade em saúde. Na ocasião, foram recolhidos prontuários das pacientes, e, de acordo com pareceres da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que isso pudesse ter ocorrido, o pedido de busca deveria ter sido específico, pois se tratavam de documentos sigilosos. De acordo com a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) do Brasil relativa ao sigilo médico, o médico não pode, sem o consentimento da(o) paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica.
Para o médico e especialista em bioética Sergio Rego, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), trata-se de um processo onde um grande número de mulheres teve seus direitos violados. “Não deveria haver uma exposição pública dessas mulheres, que ficaram rotuladas, tenham ou não feito um aborto ou curetagem. Essa exposição acabou suscitando um pré-julgamento seja lá a razão que elas tiveram para praticar o aborto. Este não é um assunto para ser tratado desta forma, com este grau de publicidade. É um assunto que diz respeito à privacidade”.
Assim como em outros países, no Brasil pode-se ter acesso a prontuários – com exceção do médico e da(o) paciente – apenas mediante a uma demanda judicial. A Resolução do CFM estabelece que, se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento. Somente se houver autorização expressa do paciente, o médico poderá encaminhar a ficha ou prontuário médico diretamente à autoridade requisitante. A resolução estabelece ainda que a matéria seja mantida em segredo de justiça.
Segundo Sergio Rego, no caso em questão, a execração pública a que foram submetidas as mulheres feriu o direito à confidencialidade do atendimento médico. “A confidencialidade das informações contidas nos prontuários dessas mulheres e confiadas aos médicos e à clínica foi gravemente violada. Na medida em que existem casos que, por determinação judicial, pode-se ter acesso a um prontuário, de todo modo o grau de exposição neste caso em particular não se justifica”, avalia Rego.
Favores sexuais em troca da diminuição da pena
Na Argentina, onde o dia 28 de setembro também foi marcado por mobilizações da Campaña Nacional por el Derecho al Aborto Legal, Seguro y Gratuito, o crime da violação do segredo médico e da privacidade de um(a) paciente está previsto no artigo 156 do Código Penal, enquadrado como um delito contra a liberdade. O que quer dizer, por exemplo, que nem mesmo um médico pode denunciar uma mulher por esta ter feito um aborto, uma vez que isto se constitui em romper um segredo médico. O país também dispõe da lei 25326 – “Protección de los datos personales” – sancionada no ano 2000.
Para o médico Mario Sebastiani, presidente da Associação Argentina de Ginecologia e Obstetrícia Psicossomática, as consequências concretas e reais da denúncia têm sido nefastas. “A situação acaba por gerar a consulta tardia de mulheres às instituições de saúde por medo de serem denunciadas e estimula uma larga cadeia de corrupção, que inclui até mesmo pedidos de favores sexuais às mulheres que se submeteram a um aborto e estão sob custódia, em troca da diminuição da sua suposta pena”, relata Sebastiani.
Se a ilegalidade do aborto na Argentina gera problemas graves, em outros países da região a situação é ainda pior. No Peru, por exemplo, o artigo 30 da Lei Geral de Saúde obriga o médico a denunciar os casos em que existam indícios de aborto, quebrando o princípio de confidencialidade médico-paciente. Na Colômbia, os parâmetros para resguardar o segredo médico e restringir o acesso aos prontuários médicos são os mesmos que no caso brasileiro, a diferença é que neste país o amparo é garantido pelo Estado e está previsto na resolução 1995 do Ministério da Saúde e não em uma resolução do Conselho de Medicina.
Na análise de Sergio Rego, episódios como o ocorrido em Campo Grande e a situação peruana deixam mais do que evidente a urgência da superação, tanto no Brasil quanto nos demais países latino-americanos, da criminalização da interrupção de gravidezes e da necessidade de uma lei que a regule.
“Evocando o principio da ética, o Estado deveria proteger mulheres nas situações especificas que as levaram a recorrer a esses procedimentos médicos. A idéia de o aparelho de Estado ter que proteger os cidadãos está vinculada à idéia da saúde publica. Esta não é uma questão policial, é um problema de saúde pública. Devido à significativa quantidade de mulheres envolvidas – e o caso do Mato Grosso mostra bem isso – não se pode colocar mais esse problema na esfera policial ou das convicções pessoais. É mais do que evidente a necessidade de se ter uma outra abordagem”, afirma o especialista.