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Por um Estado justo

Fundamentados em resultados de pesquisas científicas que mostram as conseqüências que a iniqüidade no acesso aos métodos contraceptivos e a ilegalidade do aborto trazem para a saúde física e mental das mulheres brasileiras, pesquisadores, estudantes, gestores públicos, lideranças políticas, ativistas de diversas ONGs de defesa dos direitos das mulheres, participaram do Seminário "Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos: subsídios para as políticas públicas", realizado no Rio de Janeiro, no dia 24 de agosto. O evento propunha principalmente apoiar as políticas públicas e ações do governo federal na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, como o recente lançamento do Programa Nacional de Planejamento Familiar. O debate também contemplou o tema do aborto como uma questão de saúde pública e de ética privada. Nessa perspectiva, os especialistas discutiram os problemas causados pela ilegalidade do aborto no país e defenderam o direito de escolha das mulheres, levando em conta os princípios da laicidade do Estado brasileiro e da universalidade, integralidade e eqüidade da atenção à saúde.

Ao final da reunião, as 350 pessoas presentes assinaram a Carta do Rio de Janeiro. A idéia é coletar assinaturas de apoio nos próximos 15 dias e enviar o documento à Brasília, para o Congresso Nacional.

Presentes à mesa de abertura estavam os demógrafos José Eustaquio Alves (IBGE/ABEP), George Martine (ABEP) e Taís Freitas Santos (Fundo de População das Nações Unidas), além da médica e ex-deputada federal Jandira Feghali, de José Cavalheiro, presidente da Abrasco, Lena Lavinas, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, Antonio Ivo de Carvalho, e um representante da União Nacional dos Estudantes, dentre outros. Também participaram do evento o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), Nilcéia Freire, o presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Paulo Buss, além de Aloísio Teixeira, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sede do Encontro. O evento também foi acompanhado pela Internet por pessoas da Itália, Portugal, Estados Unidos e de diversas cidades brasileiras.

No painel “As contribuições acadêmicas para as políticas públicas de direitos sexuais e reprodutivos”, coordenado por Elizabeth Meloni Vieira (CNPD/USP), a demógrafa Suzana Cavenaghi (IBGE-ABEP) falou sobre políticas de planejamento reprodutivo no Brasil. “Atualmente no Brasil observamos a queda da mortalidade, o aumento da longevidade e o declínio da fecundidade. Temos uma forma de se reproduzir muito distinta de outros países. Chegamos à média da fecundidade de 2,1 filhos no Brasil. Espanha e Itália têm a menor média, que é de 1,3 filhos por mulher”, iniciou Suzana.

Na análise da pesquisadora, baseada em estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a educação e a renda são fatores determinantes ao se falar em fecundidade. “As mulheres com menor renda e menos anos de estudo têm 212 filhos a cada 1000 mulheres em média, e aquelas com mais de um salário mínimo e nove anos de estudo têm 28 filhos. Isso nos remete à questão do planejamento familiar e ao acesso à saúde sexual e reprodutiva”, observou a demógrafa.

Suzana citou a pesquisa coordenada por Elza Berquó, em 2002, em seis capitais brasileiras sobre a lei do planejamento familiar, a qual mostra que de um grupo de mulheres e homens acompanhados no Sistema Único de Saúde (SUS) durante seis meses, apenas 47% das grávidas conseguiram a esterilização, das não grávidas somente 26% e dos homens 31% conseguiram a vasectomia. “Isso quer dizer que as mulheres grávidas são as que mais conseguem fazer a esterilização, a maioria delas feitas com uma cesariana porque o acesso ao procedimento é muito difícil. As mulheres não grávidas conseguem menos esterilização do que os homens que vão buscar a vasectomia. Essa é uma realidade que precisamos mudar nesse país”, ressaltou ela.

Em relação ao aborto, um dado do SUS sobre razão de abortamento dá conta de que no Brasil são feitos 230 mil abortamentos em 2 milhões de partos. “Esses abortamentos não são todos espontâneos, precisamos de informações para saber quais são espontâneos e quais são provocados”, disse Suzana.

Segundo ela, o maior desafio é trabalhar com políticas integrais tendo em vista problemas como a falta de acesso adequado à contracepção e a má distribuição dos métodos contraceptivos nos locais mais pobres e longínquos. “Falta também a inclusão dos homens nesse processo e de capacitação dos serviços públicos e atendimento adequado. Precisamos de políticas de promoção compatíveis para realização da maternidade e inserção no mercado de trabalho; apoio do Estado e da família no cuidado com os filhos e de políticas de promoção de eqüidade de gênero no mercado de trabalho e no âmbito doméstico”, finalizou.

No mesmo painel, a antropóloga Débora Diniz (UNB – Anis: Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero) falou sobre a situação do aborto no Brasil, apresentando resultados preliminares de um levantamento sistemático de 20 anos da literatura científica brasileira sobre o tema: 1515 fontes de informação, entre dissertações, teses, artigos, relatórios e anais de congressos:

“Por ser o aborto um crime, um tabu moral, torna-se difícil levantar dados. Alguns estudos estabelecem por metodologia a causa da internação, os procedimentos médicos utilizados e, com a entrada da Antropologia nos anos 90, iniciam-se as entrevistas à beira do leito com as mulheres”, disse Débora.

Segundo ela, a partir daí, neste conjunto limitado de estudos empíricos – o percentual de estudos de evidência no levantamento feito pela pesquisadora foi em torno de 20% a 30% –, foi possível identificar quem são as mulheres que abortam, como abortam, em que período o fazem e quais os riscos à saúde da mulher. “São mulheres entre 15 e 49 anos com uma concentração na faixa entre 20 e 29 anos, o que representa de 35% a 50% do total de mulheres, dependendo do estudo. A segunda concentração etária, próxima a essa, é de mulheres entre 30 e 39 anos quando se inclui o aborto espontâneo. Os estudos mostram que entre 75% e 85% dessas mulheres já tinham entre um e 3 filhos. São mulheres pobres, com baixo nível de educação formal. A grande maioria delas se declara católica – estudos dão conta de que o número chega a 90% em grandes capitais. Entre 60% e 80% delas são sozinhas ou não declararam a presença de companheiros por ocasião do aborto”, afirmou Débora.

A pesquisadora falou também sobre como essas mulheres abortam. ”Entre 40% e 75% das mulheres desses estudos interromperam a gestação declarando uso do misoprostol. Com a entrada do medicamento, saem de cena outros métodos, como o uso de agulhas de crochê e de ervas. Essas mulheres usam o Cytotec, chegam aos hospitais em processo de hemorragia intensa e, entre 92% a 96% delas se submetem à curetagem imediata”, observou.

Segundo ela, entre 67% e 85% das mulheres interrompem a gestação até 12 semanas. Em relação aos riscos à saúde, de acordo com os dados dos estudos apresentados por Débora, 90% das mulheres chegam aos hospitais com hemorragia e 10% delas têm seqüelas devido a esse quadro. “As principais razões apontadas pelas mulheres que fazem aborto, segundo as pesquisas, são o planejamento reprodutivo e questões econômicas”, concluiu a pesquisadora.

O médico epidemiologista Francisco Inácio Bastos (Fiocruz) falou sobre a situação da Aids no Brasil. Segundo ele, a resposta brasileira à epidemia da Aids serviu como exemplo ao mundo e fez com que o país passasse a dialogar e a cooperar com outros países em desenvolvimento. “Não há dúvida da forte influência da Igreja Católica e de vários outros setores conservadores em relação ao uso do preservativo mas, no entanto, foi possível, em prol da saúde pública, montar uma resposta que é claramente progressista e democrática. A Aids demonstrou que a coalisão de interesses é possível de ser estabelecida. O número de preservativos vendidos é extremamente expressivo: em 1990 eram 53 milhões, 70 milhões em 92 e 350 milhões no ano 2000”, avaliou Bastos.

De acordo com o médico, outra faceta da Aids, não diretamente ligada à sexualidade, é a questão das políticas de redução de danos em relação ao uso de drogas injetáveis. “Também nesse aspecto, o país teve uma das posições mais progressistas: em 2006 tivemos 150 programas em operação, basicamente financiados pelo governo federal e pelas secretarias municipais. Se pensarmos que até hoje nos Estados Unidos persiste o veto ao uso de qualquer verba federal para financiar esse tipo de programa, podemos dizer que realmente avançamos muito. Lá existem programas de grande amplitude, mas sempre em âmbito municipal ou financiados por ONGs”, salientou.

Bastos lembrou que, por outro lado, também foi fundamental o Brasil ter desenvolvido a sua capacidade de produção dos antirretrovirais e negociado a redução de custos com esses medicamentos. “Infelizmente, os custos desses genéricos – em função do preço dos sais básicos vindos da Índia – voltaram a subir após 2005. Assim, quando o país decidiu pelo licenciamento compulsório foi em um quadro não muito favorável. Mas é importante ressaltar que o Brasil é o país em desenvolvimento que oferta o maior portifólio de medicamentos para a Aids do mundo. Não é à toa que a medicação brasileira se tornou a mais cara e mais complexa. Não podemos perder de vista que os marcos da resposta à epidemia de Aids foram dados pela resposta sanitária dos anos 80 que definiu os princípios básicos que norteiam o Sistema Único de Saúde. O país teve uma clareza em negociar com o Banco Mundial, que passou de um desafeto a um parceiro ao longo de quatro rodadas de financiamento”, ressaltou o pesquisador.

Para ele, deve-se tomar a lição da Aids como um exemplo para tentar lidar com outros programas e ações de saúde que têm menos visibilidade e apoio da sociedade. “É necessário promover a integração horizontal das ações de Aids, que ainda é um programa bastante verticalizado”, recomendou.

Margareth Arilha, representante da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), falou sobre os direitos reprodutivos no Brasil. “O abortamento inseguro, a contracepção e o processo de educação sexual são os pontos mais críticos para efetivamente conseguirmos provocar mudanças culturais em nossa sociedade”, observou ela.

Margareth lembrou que, em 1989, no âmbito da Comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução Humana, já existiam as primeiras sementes que se transformaram na possibilidade de se executar um programa de aborto legal piloto em São Paulo naquele ano. “Atualmente, existe uma clara manifestação pública em relação ao debate do aborto como um tema de saúde pública, coincidentemente no mesmo ano em que o país se confronta com o crescimento das forças conservadoras. Penso ser este um momento em que devemos efetivamente discutir de que maneira podemos enfrentar uma maior pressão dessas forças em nosso país”, analisou a pesquisadora.

Segundo ela, o poder legislativo brasileiro encontra-se mais conservador do que antes, e o executivo mais favorável à ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos. “Também é inegável que está crescendo no Brasil o debate sobre o significado do Estado laico, especialmente na área da saúde, embora a CNBB ainda figure como forte ator político, com presença marcante nesta área, haja vista a Pastoral da Criança. Mas não podemos esquecer a importância das declarações do presidente Luis Inácio Lula da Silva sobre laicidade na ocasião da visita do papa Bento XVI ao Brasil, em maio último. Assim como também é digno de nota as declarações do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a respeito da importância de se discutir o tema do aborto, inclusive através da possibilidade de um plebiscito para decidir sobre a legalização do aborto no país, embora a pergunta a ser feita não deva ser se uma pessoa é a favor ou contra o aborto, e sim se uma mulher deve ser presa ou morrer porque fez um aborto”, finalizou.

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Publicada em: 29/08/2007

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