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Brasil
Sexualidade e raça na REF
O dossiê do Seminário Internacional Raça, Sexualidade e Saúde: perspectivas regionais, realizado pelo CLAM em novembro de 2004, será publicado na edição especial da Revista Estudos Feministas que foi lançada no 7º Encontro Internacional Fazendo Gênero. Organizado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), o Encontro aconteceu entre os dias 28 e 30 de agosto em Florianópolis. A edição reúne artigos assinados por pesquisadores que apresentaram trabalhos no Seminário. A pesquisadora Verena Stolke, da Universidad Atónoma de Barcelona, assina o artigo “O enigma das interseções: classe, raça, sexo, sexualidade”, que aborda as interseções que se desenvolveram no império colonial espanhol entre relações de gênero, concepções de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado. A antropóloga Maria Luiza Heilborn (CLAM/IMS/UERJ) é a autora de “Nas tramas da sexualidade brasileira”, que trata dos mitos e comportamentos sexuais, com o objetivo de demonstrar a natureza fabricada da representação acerca da sexualidade brasileira como altamente erotizada e maleável. Em “À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo”, Denise Ferreira da Silva (University of Califórnia) revisita as articulações do erótico na versão de Freyre do sujeito nacional brasileiro. Mapeio como o erotismo produz uma figura racial, o mestiço, cuja particularidade reside em ser um objeto escatológico, isto é, uma figura histórica destinada a desaparecer. O dossiê traz ainda artigos de Laura Moutinho (IMS/UERJ), Sonia Giacomini (PUC), Mara Viveros (Universidad Nacional de Colombia), Simone Monteiro e Josué Laguardia (Fiocruz) e outros. O CLAM publica com exclusividade a relatoria do Seminário Internacional Raça, Sexualidade e Saúde, assinada pela socióloga Márcia Lima, professora do departamento de Sociologia da USP, que pode ser lida abaixo ou em arquivo formato pdf disponível para download.
Com um público formado por pesquisadores e ativistas envolvidos com as temáticas de raça, sexualidade, gênero, etnicidade e saúde e se beneficiando de uma perspectiva comparativa internacional, o Seminário contribuiu para o entendimento das especificidades e similaridades dos diversos contextos analisados tais como Estados Unidos, África do Sul, Colômbia, Moçambique, Argentina e Brasil. Ainda em relação a sua abordagem comparativa, destacou-se a profícua aproximação com realidade latino-americana, diminuindo a conhecida distância existente o Brasil e o restante da América Latina em termos de produção intelectual e atuação política. A parceria institucional das entidades organizadoras também contribuiu para a sua diversidade. Três instituições com perfis distintos demonstram a complexidade que o intercruzamento desses temas promove. O Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB), extinto no ano passado, estava inserido numa das poucas universidades privadas com atenção a pesquisa[2]. Tinha como enfoque a temática racial e como tradição a prioridade de inserção de alunos e pesquisadores negros em seu quadro. A Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e o Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) vêm consolidando um valioso campo interdisciplinar em torno da temática da saúde e da sexualidade sob a perspectiva das ciências sociais, mais especificamente, sociologia e antropologia[3]. As reflexões desenvolvidas nestes dois âmbitos contribuem para dar maior complexidade a um debate central da agenda política atual, que freqüentemente se desenha de modo polarizado e moralizado. Nesse sentido, mesmo que de forma não explícita, os textos desta coletânea, bem como as discussões que se fizeram presentes no seminário conjugam profundidade acadêmica e engajamento político. A junção intelectual entre os domínios de raça, gênero, sexualidade e saúde demonstrou um nítido esforço na construção de problemáticas comuns e transversais, hoje combinadas de modo inédito na vida política do país. O encontro proporcionou também uma aproximação entre Ciências Sociais e Ciências da Saúde, fundamental no desenho de várias questões atuais, em particular com relação ao estatuto da idéia de raça, que não foi banida de ambos os campos científicos. Ademais, numa perspectiva comparativa internacional, foi possível compreender os agravos à saúde e a vulnerabilidade às DST/Aids em realidades distintas. Deparamo-nos com questões e problemas que giram em torno das construções clássicas da Antropologia e da Sociologia. O debate sobre natureza e cultura está presente nas tematizações sobre a construção da noção de gênero e seus desdobramentos: erotismo, sexualidade, hetero e homossexualidade. Da mesma forma que a construção da noção de “raça” - como categoria descritiva e identificadora - e suas conseqüências em termos de preconceito, desigualdades e discriminação raciais. A questão do Estado foi outro ponto importante nesse debate. Nos estudos sobre intervenção social evidenciou-se um Estado, em geral, omisso e, quando atuante, discriminador. Esse diagnóstico coloca um peso ainda mais significativo no entendimento da atuação da sociedade civil e, em especial, o papel das ONG`s. Ainda em relação a essa questão, foi no campo das políticas de saúde que o debate do seminário teve seu ponto de maior divergência. Questões desafiantes foram colocadas. Uma delas – absolutamente central e de pouco consenso – é em que medida o Estado deve atuar como promotor de políticas raciais nos contextos de saúde, especialmente, no tratamento de doenças como no caso da anemia falciforme. Neste breve texto serão levantadas questões que permitem uma abordagem transversal ao que foi tratado no Seminário e que deu origem a este número especial: a questão de classe, a relação entre ordem biográfica e ordem estrutural e, por último, o que este debate produziu em termos das agenda de pesquisa e política. Há um ponto que pode ser considerado transversal no conjunto dos trabalhos apresentados: a maioria das análises investiga raça, sexualidade e gênero em contexto de pobreza. O dado principal nos estudos sobre desigualdades relaciona-se com as denominadas desigualdades substanciais ou adscritas: variáveis que não se relacionam com as diferenças de atributos ou performances, mas que estão consolidadas nas desvantagens historicamente produzidas entre os grupos sociais, étnicos e de gênero, tornando-se, então, preditores das chances de sucesso dos indivíduos. Uma vez que a maioria dos trabalhos teve como foco situações de pobreza, outros elementos - tais como gênero, sexualidade e “raça” - se associaram a ela para dar sentido às suas diferentes experiências e trajetórias. Da mesma forma que, analiticamente, não podemos tomar a condição de classe como explicação suficiente dessas experiências, há um dado adicional igualmente interessante: a condição de classe pode ser um diferenciador na percepção dos indivíduos em termos das suas experiências em torno de gênero, raça, sexualidade. Creio que o ponto principal deste debate é a relação entre ordem biográfica e ordem societária fortemente evidenciada por esses temas. Estamos diante de experiências individuais construídas a partir de valores fortemente estruturados pela sociedade. Nesse sentido, ao falar de trajetórias, projetos e escolhas relatam-se experiências individuais que se dão num campo de possibilidades onde as características individuais se articulam de modo complexo com características estruturais. São trajetórias individuais construídas a partir de marcas sociais de gênero, sexualidade e raça. Mas como essas observações são analiticamente construídas? É nesse momento que a questão metodológica se aproxima das questões teóricas propostas. Ordem biográfica e ordem societária, agência e estrutura são binômios que expressam de que forma os níveis de observação evidenciam questões diferenciadas e intrinsecamente combinadas. Tomando como exemplo os estudos sobre questão racial, os dados, que nos falam de grupos, são inequívocos em demonstrar como o processo cumulativo de desvantagens sócio-econômicas tem colocado a população preta e parda na base da pirâmide social e esse processo apresenta uma forte capacidade de reprodução. Já os estudos sobre cotidiano abordam a percepção do preconceito e as situações de discriminação em contextos específicos. Nesse campo a questão adquire uma outra complexidade na medida em que envolve uma aproximação com a experiência individual, biográfica. É nesse sentido que têm sido importantes os esforços de conciliar os estudos quantitativos e qualitativos criando diálogos que ajudam a compreender a dimensão cultural na explicação e apreensão das desigualdades. Para concluir, gostaria de chamar atenção para alguns desdobramentos que essas leituras proporcionaram. Em primeiro lugar os estudos comparativos apontaram para uma necessidade de aprofundar a questão histórica. Conforme apontou Verena Stolcke em sua conferência no Seminário, a racialização da sexualidade e a sexualização da raça têm dimensão histórica fundamental: a perspectiva de regulação da sexualidade – formal ou não – por parte do Estado. Os temas de raça, sexualidade e saúde estiveram presentes e ainda estão no debate sobre a formação das nações. Seria interessante, então, que a perspectiva histórica fosse tratada de forma mais aprofundada: em que medida diferentes processos históricos de construção da nação contribuem para o quadro atual sobre o qual se debruçam esses estudos? Enfrentar esta questão é um recurso contra a substancialização da diferença que vemos acontecer com relação à raça/cor, mas igualmente com relação à homossexualidade em várias instâncias sociais, políticas e mesmo acadêmicas. Em segundo lugar, desenvolver pesquisas e ações políticas no campo da sexualidade, da questão racial e da saúde sem dúvida levanta desafios metodológicos e políticos. A constituição de um campo de pesquisa que articula variáveis tão complexas e que são tão centrais na agenda política e dos direitos humanos atuais faz com que pesquisadores e ativistas se deparem com os sentidos, significados (e perigos) das novas legalidades em curso. Atualmente o Brasil enfrenta um forte debate relativo às conseqüências da implementação de políticas cujas principais características envolvem justamente os temas aqui discutidos. Neste momento, por exemplo, tramita na Câmara o Projeto de Lei que institui um sistema de reserva de vagas para estudantes egressos de escolas públicas, com critérios específicos para a inserção de negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior. Da mesma forma que também já são conhecidas as polêmicas suscitadas em torno da legalização do aborto e do projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo. A iniciativa das instituições promotoras do evento bem como a organização deste número temático são, não somente bem-vindas, como representam uma fecunda contribuição para questões tão atuais e candentes uma vez que é preciso que nesses debates estejam garantidos os princípios da liberdade, da igualdade e da dignidade. O CLAM no Seminário Internacional Fazendo Gênero O 7º Seminário Internacional Fazendo Gênero objetiva propiciar o encontro e discussão de pesquisadores sobre diferentes perspectivas dos estudos de gênero, de forma interdisciplinar. Os cerca de 60 simpósios abordaram temas como aborto, juventude, militância feminista, violência contra a mulher, homossexualidades, além da articulação entre gênero e política, raça e etnia, literatura, mídia, ciência e tecnologia. Membros da equipe do CLAM participaram como coordenadores dos seguintes simpósios: “Sexualidade, Gênero e Reprodução na Juventude”, coordenado por Daniela Knauth (NUPACS/UFRGS) e Elaine Reis Brandão (NESC/UFRJ – CLAM/IMS/UERJ); “Homossexualidades Femininas: subjetividade e política” teve a coordenação de Miriam Grossi (UFSC) e Anna Paula Uziel (CLAM-IP/UERJ); e “Gênero, Corpo e Diversidade Sexual” foi coordenado por Anna Paula Vencato (IFCS/UFRJ), Laura Moutinho (CLAM/IMS/UERJ) e Regina Facchini (Unicamp). Além desta edição da REF, no Encontro também foram lançados dois novos livros da coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade, do CLAM, em parceria com a Ed. Garamond: A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução (CLAM/Editora Garamond), da antropóloga norte-americana Emily Martin (Universidade de Nova York), e A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual (CLAM/Editora Garamond), da socióloga Berenice Bento (UnB). Outra obra, em co-edição com as Editoras Garamond e Fiocruz, também será divulgada no evento: “O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros”, organizada por M. L. Heilborn (IMS/UERJ), Estela Aquino (ISC/UFBA), Daniela Knauth (NUPACS/UFRGS) e M. Bozon (INED). As obras foram lançadas no dia 28 de agosto. Publicada em: 04/09/2006 |