No dia 24 de abril começaram a funcionar, no Rio de Janeiro, vagões do metrô e dos trens exclusivos para mulheres. Segundo a lei do deputado estadual Jorge Picciani (PMDB), as unidades femininas devem circular em horários de rush, entre 6h e 9h, e das 17h às 20h. O objetivo é evitar assédios em composições lotadas. A medida tem dividido opiniões e levantado debates. Para muitas mulheres, segregar não é a solução para o assédio.
“Esta lei é um retrocesso na luta pela igualdade e não combate a raiz do problema. A questão é: porque os homens se sentem tão livres para assediar as mulheres? A medida admite implicitamente que o assedio é um impulso irresistível dos homens, uma fatalidade que está inscrita na natureza dos homens, a qual é impossível de ser controlada. E pressupõe que o que se pode fazer, então, é proteger as mulheres com vagões exclusivos”, questiona a socióloga Bila Sorj, professora titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para Bila Sorj, a solução buscada pela medida traz conseqüências nefastas. “Esta lei reforça a idéia de fragilidade das mulheres, como se elas fossem seres que não pudessem se defender. Segregar reforça uma serie de estereótipos masculinos e femininos que têm colocado a mulher numa condição de subordinação”, afirma.
Ao usar o vagão exclusivo do metrô na semana em que foram implantados, a ativista social Angela Freitas, uma das sócias-fundadoras do Instituto Patrícia Galvão, percebeu um clima de grande satisfação por parte das usuárias. “Fiquei impressionada. As mulheres estavam satisfeitas com a possibilidade de um transporte público sem ameaça de violência ou assalto”, diz a feminista.
Mesmo assim, Angela também não acredita que a medida venha a resolver a questão do assédio nas composições do metrô e dos trens urbanos. “A lei é incipiente. Não se resolve um problema de igualdade com segregação. É como se ela estivesse legitimando o assédio nos outros vagões”, ressalta.
Antes de o projeto de lei ser submetido à apreciação da governadora e ser por ela sancionado, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) do Rio de Janeiro enviou parecer contrário à medida, alegando ser inconstitucional. “Ela fere o artigo 5º da Constituição Brasileira, segundo o qual todos são iguais perante a lei e têm direito à locomoção no território nacional”, argumenta a advogada Anna Maria Rattes, presidente do CEDIM, sustentando o argumento principal do parecer enviado à governadora. “Segregar por sexo não resolve. Foi-se o tempo em que tínhamos colégio de menino e colégio de menina”.
Angela Freitas também questiona a constitucionalidade da lei, já que, para ela, a medida fere o direito de ir e vir das pessoas. “Esta lei segrega e vai contra um direito fundamental do indivíduo. Uma lei estadual não pode contrariar uma lei federal”, sustenta.
Para a antropóloga Maria Luiza Heilborn, coordenadora do CLAM, a lei é equivocada, a despeito de seu apelo social. “O tema levanta questões delicadas. Não há porque haver espaços segregados numa sociedade que valoriza um ideal igualitário. Além disso, a medida coloca em foco e legitima a idéia de que os homens têm impulsos que não conseguem controlar”, diz.
Segundo ela, "pela lógica da universalização, e não do particularismo, se anseia haver uma sociabilidade respeitosa entre homens e mulheres. Na verdade, as mulheres deveriam denunciar os casos de assédio e reclamar seus direitos. Mas elas têm medo de denunciar e sofrerem represálias”, observa.
Experiência internacional
O assédio sexual já levou São Paulo a testar vagões de trens preferenciais para mulheres na década de 90, mas a proposta não deu certo. Os vagões femininos foram implantados em 1995 pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), mas o espaço acabou invadido pelos homens por conta da superlotação nas demais composições. Porém, na experiência paulista, os vagões não eram exclusivos e sim preferenciais para mulheres, idosos, crianças e portadores de deficiências físicas. A CPTM colocava apenas cartazes e adesivos, alegando que não poderia vetar a entrada de outros homens em razão do artigo 5º da Constituição, que estabelece a igualdade de direitos. A idéia foi ampliada às diversas linhas da rede sobre trilhos até 1997, mas acabou desativada.
A separação entre homens e mulheres no transporte coletivo é também alvo de algumas experiências internacionais, a principal delas no metrô de Tóquio, no Japão. A Keio Line, que adotou a experiência em 2001 para combater as situações de assédio sexual, cita pesquisas segundo as quais 82% das mulheres e 56% dos homens eram favoráveis à medida.
No Cairo, capital do Egito, também houve a iniciativa, estimulada por questões religiosas. O México também teve experiências do tipo.
Ampliar a oferta de transporte público, desenvolver campanhas para intimidar os homens e orientar as mulheres a denunciar, oferecer treinamento para os agentes de segurança que mantêm contato com as passageiras, melhorar a educação e a formulação de políticas públicas estão entre as soluções sugeridas.
Maria Luiza Heilborn acha que o fundamental seria resguardar a segurança das mulheres em espaços públicos. “A proposta da nova lei é incoerente, já que o número de usuárias transcende o número de vagões destinados a elas. O que deve ser feito é garantir a locomoção das mulheres nos locais públicos em condições seguras, e não segregá-las”, diz.
Para Bila Sorj, a solução seria “alterar os valores de uma masculinidade que supõe que os homens são livres para assediar as mulheres. Isso passa por políticas públicas, que constituam a conduta como crime moralmente condenável e facilitem às mulheres a denuncia desses casos”, acredita.
“O transporte público tem que ser melhorado. O problema não é o assédio, mas a falta de trens em horário de rush”, avalia Ângela Freitas. Para Anna Maria Rattes, o assédio dos homens às mulheres é uma questão de educação. “Sou a favor de campanhas de esclarecimento”, sugere.