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As aparências enganam

Quando foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2006, o PL 6655/2006 guardava um significado importante no campo dos direitos humanos. Naqueles anos, a mudança de nome e sexo nos registros civis geralmente era rejeitada pela justiça. No Senado, o projeto mudou de identificação, tornando-se o PL 72/2007. Foi aprovado em 2010 na Comissão de Direitos Humanos. No final do ano passado, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) resgatou o projeto e, como relator, obteve aprovação na Comissão de Constituição e Justiça. No entanto, na conjuntura atual, o projeto ameaça conquistas já obtidas, conforme ativistas ouvidos pelo CLAM, que vem acompanhando as discussões sobre o projeto.

No cenário atual, a mudança de nome e sexo depende de processo judicial, já que o país não possui legislação que faculte a alteração. O PL/2007 mantém o âmbito da justiça como garantidor do direito, dispensando a necessidade de a pessoa ter passado pela redesignação genital, o que é uma das demandas dos movimentos trans. Na prática, no entanto, muitos juízes autorizam a mudança nos documentos sem a realização da cirurgia. “O projeto tal como está não avança em nada, pois preserva o processo judicial para a troca do nome. Assim, preserva a noção de que o direito das pessoas precisa de alguma tutela”, afirma a advogada Luísa Stern, integrante da Comissão Especial da Diversidade Sexual da OAB-RS.

Países como a Argentina e o Uruguai possuem legislações mais avançadas. Ambas as nações permitem por lei que seus cidadãos modifiquem o nome e o gênero em suas identidades independentemente da condição biológica e das mudanças corporais. A vivência pessoal e a auto-identificação de cada pessoa é o suficiente para a alteração no registro civil. No Brasil, pela lei que corre no Senado, não apenas a tutela da justiça permanece. Apesar de eximir a necessidade da mudança genital, a lei condiciona a alteração nos documentos a um laudo médico. “A obrigatoriedade do laudo médico é um retrocesso enorme, pois mantém a noção patológica da transexualidade em um momento em que as discussões internacionais demandam a despatologização das identidades trans”, critica Luísa Stern.

A advogada, que integra o grupo G-8 Generalizando do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), destaca que o grupo realiza mutirões de ações judiciais voltados para os direitos das pessoas trans. Nessas ações, laudos psicológicos têm sido utilizados e aceitos para demandar as alterações nos documentos. Assim, os mutirões, uma iniciativa pioneira, dispensam a lógica médica. “O PL 72/2007 coloca em perigo os mutirões ao atrelar a mudança a um laudo médico. Ou seja, na verdade, representa um retrocesso até mesmo para as conquistas jurídicas que temos alcançados com pareceres de psicólogos. Muitos juízes apresentam sentenças favoráveis às alterações nos documentos com tais pareceres. Essa dinâmica será inviabilizada com o projeto de lei”, ressalta Luísa Stern.

Mesma opinião tem Leonardo Tenório, presidente da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT). A entidade tem se mobilizado para evitar que o PL 72 seja aprovado em definitivo. “Essa iniciativa constitui um passo atrás para os direitos das pessoas trans. Reforça o caráter patológico quando o laudo médico tem sido desnecessário para muitos juízes. A Defensoria de São Paulo, por exemplo, possui um modelo de petição, apenas com laudo de psicólogos, que é encaminhado ao juiz. Temos conseguido garantir a mudança nos registros das pessoas dessa forma”, afirma Leonardo Tenório.

Um dado preocupante, de acordo com Luísa Stern, é a previsão de que a retificação do registro de nascimento será feita com a menção de que a pessoa é transexual. “Na certidão de nascimento, irá constar que a pessoa é transexual. Isso é um absurdo. Atualmente, a maior parte das decisões judiciais mantém o sigilo do motivo da mudança. Da forma como o PL 72 propõe, a condição transexual ganha um peso estigmatizador. Por que registrar textualmente? A pessoa não tem direito a definir sua identidade conforme sua vivência?”, questiona a advogada Luísa Stern.

A aprovação do projeto de lei no Senado tem um impacto mundial, de acordo com Leonardo Tenório, da ABHT. Desde 2009, a Campanha Internacional Stop Trans Pathologization mobiliza ações pelo mundo em nome da eliminação de categorias patológicas sobre o trânsito entre os gêneros dos manuais médicos. No plano global, também a Organização Mundial de Saúde revisa periodicamente as estratégias de saúde e o panorama legal dos países-membros. “É importante, para o cenário mundial, que os países avancem na despatologização da transexualidade. Isso representa um ganho político. Por isso, o PL 72 torna-se uma barreira aos esforços globais de retirar a transexualidade dos livros de doença”, afirma Leonardo Tenório.

O PL 72 implica ainda em riscos para a população trans como um todo, pelo seu caráter excludente. O texto prevê a troca nos registros apenas para indivíduos transexuais. “Como ficam as travestis? Existem decisões judiciais que permitem a retificação dos registros para pessoas que se identificam como travestis. O texto do PL 72 irá criar uma situação de restrição, pois juízes podem negar a mudança alegando ausência de previsão legal”, afirma Luísa Stern.

Diante do panorama, tanto Luísa Stern quanto Leonardo Tenório apontam como solução o PL João Nery, proposto pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) e que prevê faculta ao indivíduo trans o direito de alterar seus documentos de acordo com sua vivência, sem a tutela médica ou judicial. Batizado de PL João Nery, escritor brasileiro nascido anatomicamente mulher e posteriormente assumindo-se como homem, o texto assemelha-se ao modelo argentino. “O Estado brasileiro deve optar por esse caminho. O PL 72 é uma ameaça aos direitos trans. Por isso, é preciso discussão e mobilização para mostrar aos legisladores os perigos que estão contidos no texto”, finaliza Leonardo Tenório.

Leia abaixo manifestos lançados por movimentos sociais e entidades civis contra o projeto.

Carta da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT)

Nota da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)

Nota Comissão de Diversidade Sexual da OAB

Publicada em: 17/02/2014

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