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A criminalização da Aids

 Traduzido ao português no marco do Dia Internacional de Combate à Aids (1º de dezembro), o Relatório da Comissão Global sobre HIV e Direito – oficialmente lançado em julho de 2012 – constitui um importante e necessário estímulo para que se possa renovar o prestígio internacional da resposta do Estado brasileiro à epidemia.

A Comissão Global foi presidida pelo ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, sendo composta por outras 13 personalidades internacionais. A atuação do grupo buscou descrever a realidade jurídica sobre a epidemia do HIV pelo mundo. Isto é, como normas legais impactam nos processos de combate e/ou alastramento da epidemia. Durante 18 meses, a Comissão realizou investigações e análises a partir de testemunhos de mais de 700 pessoas, em mais de 140 países, afetadas pelo contexto jurídico relativo ao HIV.

De acordo com o documento, um aspecto que dificulta o enfrentamento ao HIV/Aids é a criminalização da transmissão do vírus. Vários países possuem formas de punição da transmissão do HIV. Uma decisão da Suprema Corte do Canadá, em 2012, decidiu que portadores/as do HIV possuem dever legal de esclarecer a seus/suas parceiros/as sexuais sua condição soropositiva, sob pena de serem acusados/as de ataque sexual agravado em caso de não revelação. Nos EUA, 32 estados possuem leis que criminalizam a transmissão do vírus HIV.

No Brasil existe o crime de perigo de contágio venéreo, previsto no artigo 130 do Código Penal vigente desde 1940. Todavia, segundo especialistas, a AIDS não é propriamente uma “moléstia venérea” – isto é, que se contrai somente pelo ato sexual –, mas sim uma doença infecciosa, que pode ser contraída de diversas formas além das condutas de cunho sexual. Assim, o crime de transmissão da AIDS não está esculpido em nenhum dispositivo penal do Código Penal Brasileiro. Desde 2001 tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 4887, do deputado Feu Rocha (PSDB-ES), cujo objetivo é “considerar crime contra a saúde pública a contaminação de terceiros com doença incurável de que sabe-se portador, incluindo o contágio pelo vírus HIV”.

Mas embora não haja um dispositivo penal específico, uma pessoa soropositiva que mantenha relação sexual sem o uso de preservativo e sem que o parceiro saiba sobre o HIV está cada vez mais correndo o risco de ser enquadrada pela lei penal, sobretudo a partir dos anos 2000. A polícia e o poder judiciário têm proposto interpretações que definem esses casos como “agravantes de tentativas de assassinatos”. Relatório da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids apresentado à Revisão Periódica Universal (RPU) da ONU, em 2012, compilou 10 casos de condenação da transmissão do HIV. Diante desses casos, várias perguntas se colocam: até que ponto é possível saber que a pessoa infectada após a relação, de fato, já não era portadora do vírus? Como provar tecnicamente que a transmissão se deu na relação alegada no processo? De que forma é possível provar a intencionalidade na transmissão? Que tipo de testemunho é utilizado?

Além dessas perguntas técnicas, existem outras questões a serem ponderadas, como a negociação em torno do uso do preservativo – especialmente nas relações conjugais, que muitas vezes envolvem relações de poder – e o consentimento, isto é, o fato de que em certas circunstâncias a não utilização da prevenção é algo acordado entre as partes, seja de forma verbal ou não. Ou seja, a transmissão pode ser interpretada como algo que pressupõe uma co-responsabilidade, uma vez que a “responsabilidade” pelo uso da prevenção não pode ser atribuída somente a uma pessoa.

De acordo com Veriano Terto Jr, professor de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a criminalização da transmissão do vírus representa um grave dano às respostas ao HIV. “Ainda não há uma lei específica que puna a transmissão do vírus. Mas as decisões judiciais nesse sentido constituem um claro reforço do estigma que envolve o vírus e seus portadores. Falta ao Poder Judiciário uma atualização mais consistente em relação às pesquisas científicas. Assim, é comum vermos decisões que não são baseadas em conhecimentos científicos sobre a transmissão do HIV e que acabam reforçando a ideia do portador do vírus como alguém perigoso, algo que já conhecemos muito bem desde o início da epidemia 30 anos atrás. São condenações que se baseiam apenas em relatos e testemunhos”, afirma Veriano Terto, para quem qualquer projeto de lei de cunho penal, na conjuntura política atual, é um perigoso precedente, tendo em vista o ambiente de retrocesso em termos de combate à epidemia no Brasil.

O relator especial da ONU para a saúde, Anand Grover, recomenda aos países não lidar com a epidemia pela via da criminalização, pois representa uma violação dos direitos humanos. De acordo com o relator, penalizar significa prejudicar as respostas de direitos humanos ao HIV e, portanto, favorecer o alastramento da epidemia. Para Anand Grover, a criminalização da transmissão se dá em duas formas: através de leis específicas e através da aplicação de leis existentes que possam ser justificadas para tanto. Grover destaca ainda que há casos em que a transmissão do vírus constitui agravante em casos de violência sexual. Uma possibilidade que já existe no Brasil: reforma de 2009 do Código Penal prevê a transmissão do HIV como agravante em casos de estupro – uma maneira obscura de criminalizar a transmissão.

“Essa associação da criminalização da infecção pelo HIV com a violência sexual, caso não seja ponderada, pode contribuir para o reforço do estigma que afeta de forma tão contundente as pessoas vivendo com HIV/AIDS, impactando, sobretudo no modo como elas lidam com a doença e o tratamento, além de abrir precedentes para a lógica que visa criminalizar a transmissão. Desconsiderar que o HIV perpassa as dimensões da sexualidade e da reprodução, e os modos como cada sociedade e grupos sociais as percebem, representam e vivem, acaba por restringir a AIDS à transmissão de um agente viral, o que constitui um retrocesso. Considerar que algumas pessoas desejam se infectar em relações afetivas e sexuais, ou mesmo percebam a presença do vírus como parte de jogos sexuais e eróticos, é levar a sério as dimensões culturais e simbólicas que perpassam e constituem as relações sociais, incluindo as sexuais e afetivas”, avalia Claudia Cunha, pós-doutoranda do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) que estuda a construção política da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/AIDS (RNAJVHA).

Uma das maiores críticas dos movimentos sociais de luta contra a Aids é o afastamento contínuo das respostas governamentais da dimensão social da epidemia. Para Claudia Cunha, “a perda da perspectiva que ilumina os determinantes sociais da doença – conforme representa o conceito de ‘vulnerabilidade’, que substitui o conceito de ‘risco’ (grupo e comportamento) já na década de 1990 – acaba por empobrecer a análise dos aspectos que fazem com que determinados grupos, em função das desigualdades sociais, sejam mais ou menos atingidos pela infecção do HIV e pela doença, a AIDS. A restrição do fenômeno a aspectos individuais, descolados das condições de vida, contribui para a despolitização da luta contra a AIDS, somada ao esvaziamento dos espaços de reivindicação e controle social”, analisa a pesquisadora.

Para os especialistas, o Brasil está longe de cumprir e assegurar “leis e regulamentações anti-discriminação, divulgação de informações e prestação de serviços de saúde que protegem as pessoas que vivem com HIV e outras populações-chave”. A administração federal tem recuado, em nome da governabilidade, em campanhas de prevenção para populações específicas e vulneráveis ao HIV (como gays), em um momento em que o vírus tem avançando entre homens que fazem sexo com homens e jovens. Em junho deste ano, o Ministério da Saúde, por pressão de setores religiosos conservadoresrecuou de campanha de prevenção para prostitutas. No Brasil, a prostituição em si não é crime, embora os bordeis não sejam permitidos. Projeto de Lei do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) procura regulamentar a prostituição, promovendo não apenas a legalização das casas, como também definindo diretrizes que diferenciam o serviço sexual autônomo de exploração. Tanto o relatório da Comissão Global de HIV e Direito quanto relatório do Banco Mundial “A Epidemia de HIV entre Trabalhadores Sexuais” apontam que a legalização e regulamentação da prostituição abrem caminho para um combate eficaz da doença.

O relatório da Comissão Global sobre HIV e Direito destaca que o reconhecimento de tais populações, bem como o combate à discriminação e ao preconceito, está na base das respostas eficazes contra a epidemia. A rigor, as respostas baseadas numa compreensão dos direitos humanos da saúde, que acolhem e orientam os segmentos populacionais marginalizados ao invés de envolvê-los em medidas penais, configuram as mais eficazes, pois contribuem para os esforços de prevenção e tratamento na medida em que há reconhecimento e solidariedade.

Desinvestimento

Na semana do Dia Mundial de Combate à Aids (1º de dezembro), o Ministério da Saúde anunciou que todos os infectados com o HIV passarão a ter acesso à medicação antirretroviral, independente do estágio da doença e da contagem de células de defesa, que influenciam as possibilidades de transmissão. Surgiram críticas entre movimentos sociais acerca da ênfase na medicalização ao invés de uma abordagem mais integral, que articule as condições sociais de transmissão e as populações-chave, como gays, profissionais do sexo, migrantes, prisioneiros e usuários de droga. Para Veriano Terto Jr, no entanto, a oferta de medicação não deve ser desconsiderada. Mas é pouco; na verdade, acaba ocultando a situação lastimável da rede pública de atendimento aos portadores.

“A situação é crítica. A despeito de o Ministério da Saúde anunciar a distribuição da medicação para todos, o que notamos é um desinvestimento no campo do HIV/Aids. A rede pública de saúde não tem tido sucesso em incluir as pessoas no tratamento. É um desastre, estamos próximos de uma crise humanitária. A rede pública não consegue prover assistência nem básica, nem de média e alta complexidade. O tratamento é de longo prazo, as pessoas precisam de um acompanhamento de qualidade. Infelizmente, o governo federal não tem cumprido sua obrigação. Cada vez mais estamos longe de um enfrentamento ao HIV/Aids baseado em uma perspectiva de direitos humanos em saúde”, aponta Veriano Terto, que no site “Aids no Brasil hoje: o que nos tira o sono” relata a incapacidade da rede pública de saúde de atender e acolher pacientes com HIV.

As respostas iniciais do Brasil à epidemia tornaram-se referência mundial, em especial pela parceria com a sociedade civil. No entanto, nos últimos anos, os recuos e fragilidades institucionais têm abalado o enfrentamento à doença, situação que começa a ganhar visibilidade em espaços internacionais, conforme artigo publicado no Journal of the International AIDS Society. No relatório da Comissão Global sobre HIV e Direito, recomenda-se que os países abandonem a legislação penal como forma de lidar com a epidemia. O Brasil, no entanto, tem trilhado uma rota perigosa, na qual as populações-chave ficam cada vez mais desencorajadas a manter relações sexuais protegidas e a realizar a testagem e o tratamento. A punição tem sido a desumanização de populações-chave, bem como a perda de referência da dimensão social da epidemia. Tudo em contraposição ao que documentos internacionais têm recomendado.

Publicada em: 12/12/2013

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