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Camp! Arte e política

Uma montagem de vigas de madeira em diferentes variações de vermelho, azul e amarelo. Uma porta, simetricamente dividida com as cores rosa e azul, com dois olhos, dois narizes, uma boca e duas maçanetas que insinuam lúbricos orifícios. Brilho. Galerias fotográficas de transformistas e travestis. Luxo. Viris bonecos guerreiros enfeitados com arranjos de flores. Drama.

A exposição “Camp! Arte e Diferença” evidenciou a atualidade de um movimento estético que também é político. Um estilo que destaca o lugar da desigualdade nas relações sociais, com particular foco nas relações de gênero, no erótico e na diferença sexual. A potência do vulgar, de estéticas e gêneros ‘menores’, como o pastiche e o folhetim.

A escritora norte-americana Susan Sontag , no seu célebre texto “Notes on camp”, de 1964, o definiu como uma sensibilidade onde prevalece a artificialidade, o exagero, a manifestação performática, a afetação, o esoterismo: uma série de práticas e representações que têm no espaço urbano um terreno fértil para a estilização.

De acordo com Denílson Lopes, professor da Escola de Comunicação da UFRJ, o camp constituiria um domínio que se manifesta de duas maneiras: ora através do comportamento, articulando afetação, teatralidade e performance na constituição de personagens e práticas – como no caso das drag queens que têm na pose o trunfo para se destacar na noite; ora de um tipo de sensibilidade, que afeta as percepções e sensações.

Para Sontag, roupas, filmes, mobília, músicas e edifícios são exemplos dessa estética. A linguagem camp trabalha com a textura, com a superfície. Explora conteúdos contraditórios, entre os quais as relações de gênero são uma temática privilegiada. “As drag queens, as travestis ou pessoas que transitam entre o masculino e o feminino nos passam uma ideia de indefinição justamente por não se encaixarem dentro dos padrões sociais tradicionais”, afirmou o professor Marcelo Campos (Instituto de Artes da UERJ), curador da exposição.

A estética camp produz uma versão estilizada, muitas vezes cômica, das relações sociais. Por isso, a ideia de fluidez entre categorias sociais como masculino e feminino, própria das expressões englobadas em inglês pelo termo queer, adotado como rubrica teórica, guarda um parentesco próximo com o camp. Mas Sontag destaca que nem sempre o exagero é um marcador do camp. As atenuações são também importantes. Afinal, o camp é um regime de gradações, matizes. Não à toa, a figura do andrógino aparece como elemento notável: “O mais belo em homens viris é algo feminino; o mais belo em mulheres femininas é algo masculino”, afirma Sontag.

O cinema tem sido um espaço marcante para recepções e representações camp, tanto através da comédia como do melodrama. O filme australiano “Priscila, a rainha do deserto” (Stephan Elliot, 1994), que narra a saga de um grupo transformistas a caminho de um show, recria e homenageia uma longa tradição de investimento neste estilo a cargo de artistas de cabaré amadores e profissionais. A performance das personagens demonstra a natureza sedutora do camp, isto é, aquilo que evoca a ambiguidade, que desestabiliza marcas hegemônicas (Veja aqui artigo na revista Sexualidade, Saúde e Sociedade sobre o filme e sua interlocução com a estética camp). De acordo com Sontag: “É um modo de sedução que emprega maneirismos suscetíveis de dupla interpretação, gestos repletos de duplicidade”.

O repertório camp, no entanto, apesar de sua marca teatral, não se caracteriza pelo cálculo meticuloso das práticas. A espontaneidade deve pautar nas manifestações. As travestis retratadas na exposição se deixaram capturar em poses e, nem por isso, prejudicam a espontaneidade. São indivíduos que desafiam normas sociais, invertendo ou misturando papéis. Definem personagens que não se estabilizam, pois trazem a marca da transgressão. Estão presos mais às formas que aos conteúdos. Não atuam pretensiosamente. O sério e o “normal” são desafiados pela sua frivolidade. São artificiais, mas integram o duplo registro que sustenta o camp: a inocência e a corrupção.

“O Camp revela inocência, mas também, quando pode, a corrompe”, diz Sontag, que acrescenta: “No camp, o elemento essencial é a falta de seriedade, uma seriedade que falha. Evidentemente, nem toda a seriedade que falha pode ser associada ao camp. Apenas aquela que apresenta a mistura adequada entre o exagero, o fantasioso, o passional e o ingênuo”.

O repertório camp não está definido apenas pela ordem do extraordinário, do glamour e do humor. O tempo é também um instaurador do estilo. Sontag argumenta que muitos objetos camp são anacrônicos, démodé. “Não é um amor pelo velho como tal. É que o processo de envelhecimento ou deterioração promove o destacamento. [...] O tempo libera o trabalho de arte de sua relevância moral, entregando-o ao camp”, afirma Sontag.

Antigas também são as primeiras manifestações notáveis de camp, que residem no século XIX, quando produções literárias, artísticas e arquitetônicas (como a obra de Oscar Wilde e o estilo Art Nouveau) passaram a privilegiar o artifício, a superfície e a simetria, conforme aponta Sontag. O camp tem se notabilizado através de produções culturais contemporâneas. Apesar de estar profundamente atrelado ao que o escritor Jack Babuscio define como sensibilidade gay, como na atuação dos “female impersonators” etnografados por Esther Newton nos anos 60 (Mother Camp, publicado em 1979), o camp está também presente, por exemplo, no mundo das celebridades. 

Nos Estados Unidos, o movimento camp tornou-se também notável pelo seu papel político. De acordo com Denílson Lopes, o camp saiu do gueto para ganhar os espaços culturais mais amplos. E essa passagem se deu com a participação decisiva da mídia. Nesse país, assim como no Brasil, o camp está relacionado com as divas, as cantoras, os atores de novela. “A relação entre fã e estrela é importante no camp, pois é mediada pelo glamour, pela performance, pelas representações que a figura pública provoca, afetando as sensações do fã. É uma tradição antiga no Brasil, desde as cantoras de rádio em meados do século passado. Nos dias atuais, as estrelas de novela servem de referência, pois possuem uma singularidade imposta pela sociedade. Os meios de comunicação, portanto, desempenham um papel importante nessa dinâmica”, observa Denílson Lopes.

No universo LGBT, as paradas gays, eventos de cunho político, constituem espaços conhecidos pelas manifestações camp. Espaços que despertam opiniões contraditórias. De acordo com Denílson Lopes, a performance e o exagero são comumente vistos como exemplos de estereótipos – do tipo homem gay efeminado e afetado. “O camp, de fato, pode abrir tal tipo de interpretação. Pode ser encarado como um reforço de clichês. Mas pode também suscitar uma olhar alternativo, distante dos padrões hegemônicos, chamando a atenção para identidades que não são fixas, que deslizam entre os gêneros sem se prender à estabilidade que certas categorias sociais expressam”, argumenta Denílson Lopes, para quem a mídia também está implicada politicamente. 

“Os meios de comunicação, especialmente nos tempos atuais, são elementos centrais na vida cotidiana. Eles constroem pontes, articulam desejos, normatividades e transgressões. Portanto, em meio à pluralidade de possibilidades de experiências, a estética camp representa um espaço de diálogo”, destacou Lopes. Segundo relatou o professor de Comunicação, a atuação das travestis foi primordial na revolta de Stonewall, em 1969, que ficou registrada como marco do movimento conhecido como Gay Liberation. Elas passaram a constituir uma identidade importante politicamente, fazendo frente ao contexto de constante violência que sofrem no cotidiano. “A performance nos moldes camp, nesse sentido, pode representar um forma de afirmação e reivindicação por respeito na sociedade”, completa.

Opinião semelhante tem o professor Marcelo Campos (Instituto de Artes/UERJ), especialmente em um momento histórico de luta pela ampliação dos direitos de categorias discriminadas pela sua performace sexual e de gênero. Para o curador da exposição que a UERJ abrigou, com o camp “poderíamos aprender a respeitar as diferenças, sabendo que não há um único modelo a ser seguido. A máscara, o travestismo, a cultura do excesso, o amor entre iguais, são recorrentes na vinculação camp”, explicou. “Vamos aprender com o afeto, antes de tudo. Vamos aprender com o ‘com-sentir’, vibrando juntos, pulsando juntos, sem pedir explicações”, concluiu.

Publicada em: 02/10/2013

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