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Projeto assegura o que já é permitido
Parlamentares da bancada religiosa do Congresso Nacional brasileiro pressionam a presidente Dilma Rousseff para que ela vete o projeto de lei 03/2013, que regulamenta o atendimento emergencial em hospitais a mulheres vítimas de violência sexual e estupro. Na interpretação dos oposicionistas religiosos, no entanto, o projeto foi tomado como uma espécie de manobra para ampliar as previsões legais de abortamento no país, onde o aborto é permitido em caso de gravidez resultante de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal. A proposta, de autoria da deputada Iara Bernardi (PT/SP), foi aprovada na Câmara Federal e no Senado, e aguarda a sanção da presidente. Segundo a autora, o projeto apenas detalha os protocolos a serem seguidos quando uma mulher é vítima de violência sexual. A pressão dos setores religiosos no Congresso pelo veto presidencial à proposta impeliu os movimentos de mulheres e de direitos humanos a se mobilizarem (Clique aqui e leia nota da Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB). Para a feminista Schuma Schumaher, coordenadora da Rede de Desenvolvimento Humanos (Redeh), o argumento de que a aprovação do projeto de lei possa ampliar os casos de abortamento legal não procede. “O PLC não cria qualquer novo permissivo legal para o aborto. Busca garantir o direito de mulheres e meninas vítimas de violência sexual ao acesso a informações e a medicamentos de prevenção à gravidez e a doenças sexualmente transmissíveis. A nova lei permitirá enfrentar melhor os obstáculos judiciais que os segmentos que advogam contra os direitos, a saúde e a vida das mulheres e adolescentes vêm impondo às vítimas de violência sexual quando estas decidem realizar o aborto a que têm direito. Em caso de gravidez em conseqüência de violência sexual, o PL 03/2013 garante à mulher o direito de receber informações e ter acesso a uma atenção humanizada e sigilosa ao aborto legal, caso seja esta a sua decisão, conforme a lei vigente e normas técnicas do Ministério da Saúde”, afirma. Segundo ela, a proposta refere-se a determinações já vigentes, como por exemplo o Decreto Presidencial 7.958/2013, que estabelece diretrizes para o atendimento às vitimas de violência sexual pelos profissionais de segurança publica e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). O decreto, publicado pela presidente Dilma Rousseff no último Dia Internacional da Mulher, visa desburocratizar e humanizar o atendimento, agilizando a emissão de laudos periciais. Dentre as medidas que os setores religiosos atacam, está a distribuição do medicamento levonosgetrel. Conhecido como pílula do dia seguinte e ministrado como forma de profilaxia para a gravidez indesejada, o medicamento é considerado um contraceptivo, o que desperta temores em setores conservadores que associam a contracepção ao aborto. “Se usado até 72 horas após a relação sexual, o medicamento dificulta o encontro entre o óvulo e o espermatozóide, impedindo a fecundação e, portanto, a gravidez. O levonosgetrel já faz parte dos métodos contraceptivos comprados e enviados pelo Ministério da Saúde (MS) para todas as Unidades Básicas de Saúde de todo Brasil e disponível para qualquer cidadã que o desejar. Em 2012 o Ministério da Saúde publicou o ‘protocolo para utilização do levonosgetrel’, direcionado aos profissionais de saúde, e parte do conjunto de ações relacionadas à Rede Cegonha”, afirma Schuma Schumaher. A Rede Cegonha é o atual carro-chefe do governo federal no que tange à saúde das mulheres. Dentre outros aspectos, garante à mulher o direito ao planejamento reprodutivo, do qual medicamentos contraceptivos de emergência são eixos centrais. Afinal, evitam gravidezes indesejadas e a consequente procura por aborto clandestino e inseguro, quarta causa de morte materna no país. Para Leila Linhares, advogada e presidente da Cepia, a investida de setores religiosos contra o PLC 03/2013 remete às discussões, polarizadas por movimentos de mulheres e grupos religiosos, sobre concepção, vida e abortamento durante a Constituinte de 1988. Nos anos 1990, foram instituídas a lei de planejamento familiar e a norma técnica de prevenção de tratamento de agravos resultantes da violência sexual contra mulheres (que tem sido constantemente revisada). “Mais uma vez, movimentos religiosos se voltam contra os direitos das mulheres. O PL 03/2013 não atropela nenhuma previsão legal. O Código Penal de 1940 garante à mulher vítima de estupro o direito à interrupção da gravidez. O que se tenta, portanto, é assegurar em lei o que já é permitido às mulheres vítimas de violência. O abuso sexual atenta gravemente contra a saúde das mulheres, e o direito à saúde é constitucional”. A violência sexual contra a mulher configura um quadro grave no Brasil, e os dados crescem dia-a-dia. Os recentes casos de estupro acontecidos em transportes públicos na cidade do Rio de Janeiro trouxeram à tona e a conhecimento público a realidade de um fenômeno alarmante: de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), o estado do Rio de Janeiro reportou 6.029 casos de estupro em 2012 (o que significa um aumento de 24% em relação a 2011, quando foram reportados 4.917 casos). São 17 casos por dia. Ainda segundo o ISP, somente nos três primeiros meses de 2013, já foram relatados 1500 casos. Isso só no estado do Rio de Janeiro. “Além da violência sexual praticada nas ruas, existem os casos que acontecem dentro das famílias, entre relações de proximidade. Cresce também o número de casos de ‘estupro corretivo’, praticado por grupos de homens contra mulheres lésbicas, bem como os de estupros coletivos contra mulheres muito jovens. Contudo, as vítimas desconhecem os lugares onde podem ser atendidas e os serviços oferecidos. Segundo pesquisa de opinião realizada pela organização Católicas pelo Direito de Decidir, 96% da população não tem informação a este respeito”, afirma Schuma Shumaker. Para o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de janeiro (OAB-RJ), Bernardo Campinho, o PL 03/2013 consolida e dá poder de lei a medidas que o Estado brasileiro há anos já pratica. “A estratégia de tais setores parece ser a de radicalizar pra manter tudo como está, ou seja, impedir avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. No entanto, não há alargamento em relação ao Código Penal ou em relação à jurisprudência. O projeto não tem caráter penal, ele está focado na vítima, na sua saúde e integridade. Inclusive, os homens também estão incluídos no projeto, o que expressa uma preocupação importante do Estado brasileiro em relação às vítimas”, observa Bernardo Campinho. Sobre a argumentação de setores religiosos de que o projeto de lei poderia abrir brechas para a prática generalizada do aborto, Bernardo Campinho afirma que não faz sentido. “Aborto e contracepção são coisas distintas. Nos casos de estupro, o abortamento prescinde de boletim policial, ou seja, a vítima não precisa apresentar um registro formal de que foi violentada. Se a promoção ou consolidação de direitos reprodutivos levasse a proliferação de casos de aborto, as normas técnicas do Ministério da Saúde teriam feito isso”, argumenta Bernardo Campinho. Para Schuma Shumaher, qualquer veto parcial ou integral ao PL contraria os direitos das mulheres conquistados nas últimas décadas e referendados em Conferências Nacionais e Internacionais. “Significará um retrocesso inigualável na agenda dos direitos humanos. A demanda de segmentos conservadores não é democrática. É autoritária, atenta contra o Estado laico e tende à teocratização do Estado. A sanção deste PLC está em sintonia com as manifestações de rua pela laicidade do Estado, que ficaram evidentes nos protestos populares contra os projetos de cura gay, do estatuto do nascituro e do bolsa estupro, entre outros absurdos fundamentalistas em tramitação no Congresso Nacional. A presidenta Dilma tem todo nosso apoio para sancionar este projeto de lei integralmente”, conclui. Publicada em: 23/07/2013 |