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Outras famílias

Para o sociólogo Luiz Mello, é muito difícil pensar na aprovação de um projeto de lei como o da PCR, sem contar com o apoio explícito do Poder Executivo. “O que ocorre é que este poder está refém das alianças partidárias que lhe assegura maioria no Congresso Nacional, o que inviabiliza que até mesmo um Presidente da República assuma posição pública e firme em defesa da liberdade de orientação sexual no País. Setores da base aliada vinculados a grupos religiosos fazem das demandas de gays, lésbicas e transgêneros moeda de troca nas articulações políticas e os políticos, por sua vez, ao temerem perder votos nas próximas eleições caso apóiem demandas como a da PCR, só fazem reforçar uma homofobia de Estado”, questiona o pesquisador. Mello acaba de lançar o livro (CLAM / Editora Garamond), cuja resenha, assinada por Ana Paula Uziel, pode ser lida aqui.

O sociólogo lembra que, em 1993, fazer uma tese sobre conjugalidade homossexual parecia ainda pouco relevante no contexto dos grandes debates sobre família no Brasil. Naquele ano, Mello concorria a uma das poucas vagas no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), onde, apesar da pouca visibilidade do tema, apresentou um anteprojeto de tese sobre relações amorosas estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Dois anos depois, a apresentação do Projeto de Lei que propõe a regulamentação da união civil entre pessoas do mesmo sexo colocaria a legitimidade das relações amorosas homossexuais na ordem do dia. Enquanto o Projeto de Lei ainda espera aprovação no Congresso, a tese defendida pelo sociólogo foi adaptada e está sendo publicada no livro Novas Famílias.

Nascido no Recife e formado em sociologia pela Universidade de Brasília, Mello é professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade federal de Goiás desde 2002. Nesta entrevista, ele fala do livro e identifica os principais obstáculos na luta pelo reconhecimento social e jurídico da dimensão familiar das uniões homossexuais no Brasil.

Em 1993, ano em que o sr. começou sua tese, o assunto conjugalidade homossexual era ainda pouco abordado nos centros acadêmicos. Mesmo assim, o sr. resolveu desenvolver um trabalho sobre. O que o levou a essa escolha?

A principal motivação foi a constatação de que, à exceção dos estudos pioneiros de Jurandir Freire Costa e de Maria Luiza Heilborn, praticamente inexistiam no Brasil trabalhos acadêmicos sobre conjugalidade envolvendo pessoas do mesmo sexo. Àquela época, a maioria das reflexões sobre homossexualidade estava centrada na figura do indivíduo ou do grupo de militância, muitas vezes restrita ao âmbito das conseqüências da epidemia de hiv/aids. Ao mesmo tempo, em fins dos anos 80, países do norte da Europa começaram a conferir reconhecimento legal a parcerias entre pessoas do mesmo sexo, o que desencadeou um debate em escala mundial sobre o tema. Foi apenas em 1995, com a apresentação do Projeto de Lei n° 1151/95, que disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo, pela Deputada Marta Suplicy, que a sociedade brasileira passou a discutir, às vezes de forma obsessiva e pouco racional, a possibilidade de reconhecimento legal e social dos casais formados por dois homens ou por duas mulheres. Desde então muita coisa mudou no Brasil e no mundo e hoje os debates sobre conjugalidade e parentalidade de gays e lésbicas ocupam lugar central nos estudos sobre parentesco e família no âmbito das ciências sociais.

A que se referem as “novas famílias” do título de seu livro, adaptação da tese?

Exatamente aos casais que desafiam a norma heterocêntrica e não fazem da diferença sexual um pré-requisito para a constituição de laços conjugais. Ao mesmo tempo, a expressão só faz sentido se pensarmos que “novas” reporta-se à visibilidade social crescente da conjugalidade homossexual a partir da última década do século XX. Não restam dúvidas de que práticas afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo sempre existiram em todos os tempos e em todas as sociedades humanas, mas foi apenas neste momento histórico que estamos vivendo no mundo ocidental que gays e lésbicas ingressam na arena política reivindicando o reconhecimento legal de suas parcerias amorosas. Isso é um fenômeno social absolutamente novo, sem precedentes na história da humanidade, que coloca em xeque valores profundamente arraigados como definidores da idéia de família, a qual durante tanto tempo esteve fortemente associada à noção de reprodução. É muito interessante observar que isso ocorre num cenário em que, mesmo entre heterossexuais, a conjugalidade se encontra desvinculada da sexualidade e também da reprodução. Ou seja, para ter filhos, não há necessidade de casamento, nem mesmo de relações sexuais, e para viver a sexualidade não mais se está aprisionado a uma estrutura familiar que pressupõe casamento e filhos.

Quais os principais obstáculos na luta pelo reconhecimento social e jurídico da dimensão familiar das uniões homossexuais no Brasil? No que se alicerça a interdição aos casais homossexuais ao direito à parentalidade?

Os principais obstáculos estão relacionados à intolerância religiosa, ao machismo e à especificidade do regime político brasileiro. A meu ver, não restam dúvidas de que as religiões, no caso do Brasil especialmente a católica e a protestante, representam o que há de mais conservador nos debates sobre a construção de uma ética sexual fundada na liberdade individual e no respeito à diversidade. Por outro lado, as principais instituições responsáveis por legitimar e legalizar transformações no campo da moral e da família – leia-se igrejas, governo e meios de comunicação de massa – são totalmente dominadas por homens (menos de 10% das parlamentares brasileiras são mulheres, para só citar um exemplo), que tendem a ser muito mais homofóbicos do que as mulheres, considerando-se que a própria noção de masculinidade é construída a partir da negação de qualquer possibilidade de desejo homossexual. Por fim, é muito difícil pensar na aprovação de um projeto de lei como o da PCR (ou qualquer outro análogo), sem contar com o apoio explícito do Poder Executivo. O que ocorre é que este poder está refém das alianças partidárias que lhe assegura maioria no Congresso Nacional, o que inviabiliza que até mesmo um Presidente da República vinculado ao Partido dos Trabalhadores assuma posição pública e firme em defesa da liberdade de orientação sexual no País. Quando se aponta nesta direção, setores da base aliada vinculados a grupos religiosos fazem das demandas de gays, lésbicas e transgêneros moeda de troca nas articulações políticas, o que impede sistematicamente que o governo assuma para si a responsabilidade pela negociação da aprovação dos projetos de lei em trâmite.

O sr. dedica alguns capítulos à análise do Projeto de Lei 115/95, que propõe a regulamentação da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Em sua opinião, no tocante à sociedade, o que falta para o Brasil reconhecer e legitimar as relações amorosas estáveis entre pessoas do mesmo sexo no país? Qual o maior entrave no que diz respeito à Câmara?

A sociedade brasileira me parece muito mais aberta à diversidade do que nossos representantes eclesiásticos e políticos, bastando ver o estrondoso sucesso das paradas GLBT que ocorrem em todo País. Não tenho dúvidas de que muito das resistências sociais ainda enfrentadas por homossexuais é conseqüência da intolerância religiosa que persegue gays e lésbicas de forma obsessiva, como se o reconhecimento da legitimidade do amor entre pessoas do mesmo sexo pudesse destruir a própria humanidade ou levar todos a se transformarem automaticamente em homossexuais. Os políticos, por sua vez, ao temerem perder votos nas próximas eleições caso apóiem demandas como a da PCR só fazem reforçar uma homofobia de Estado, a qual legitima que o cidadão autodeclarado heterossexual sinta-se no direito de conceber-se como mais humanos que os não heterossexuais. Em todos os países que aprovaram leis de união civil ou de casamento nos últimos 15 anos, o que se observa é que a sociedade mudou muito pouco em conseqüência disso, e tais mudanças sempre foram na direção de contribuir para a construção de um mundo mais justo, solidário e democrático, onde um beijo, por exemplo, começa a ser visto como apenas um beijo, não interessando se é dado por dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher.

Que na Câmara dos Deputados e na sociedade brasileira se falam duas línguas: uma da intolerância e da exclusão, associada aos defensores da não aprovação da PCR, e outra da liberdade e da ampliação dos direitos de cidadania, expressa por aqueles que defendem a legitimidade da conjugalidade homossexual. É desolador constatar que, em geral, o trabalho de convencimento racional acerca da necessidade de reconhecimento social dos vínculos entre pessoas do mesmo sexo esbarra em preconceitos arraigados no machismo, no medo da diferença e numa concepção de humanidade que exclui aqueles que não se enquadram nos parâmetros de “normalidade”. A posição dos representantes de grupos religiosos é de uma beligerância que se disfarça em defesa de valores sagrados, negando ao direito à liberdade de orientação sexual o estatuto de um direito humano. Fora da heterossexualidade não haveria salvação, cidadania ou humanidade.

O sr. pesquisou como conjugalidade e parentalidade são compreendidas tanto pelos homossexuais quanto pela Igreja Católica. Há uma total dissonância, não?

Acho que há mais que uma dissonância, uma verdadeira incompatibilidade. Mas vivemos numa sociedade laica e os valores de um grupo religioso não podem ser impostos ao conjunto dos cidadãos. Ser livre para eleger os parceiros afetivo-sexuais é um pré-requisito básico da vida em uma sociedade democrática, e é isso que temos visto nos últimos anos, especialmente quando países como Holanda, Bélgica, Espanha e Canadá reconhecem a igualdade plena entre relações homo e heterossexuais na esfera pública, por meio de uma legislação de casamento não mais centrada na diferença sexual. No caso dos três primeiros países, inclusive, já é possível ao casal de pessoas do mesmo sexo a adoção de crianças conjuntamente ou o reconhecimento da parentalidade de ambos, nos casos de reprodução biológica. Seguramente, o Brasil será um país bem mais interessante quando compreendermos que a heterossexualidade não é uma característica inerente a todos os seres humanos e que o reconhecimento social e legal dos vínculos entre pessoas do mesmo sexo em nada ameaça a vida em sociedade.

Publicada em: 09/01/2006

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