Brasileiros, cabo-verdianos e ucranianos são as três maiores comunidades migratórias em Portugal. Nos espaços de sociabilidade LGBT, no entanto, os imigrantes brasileiros são os que têm maior visibilidade, segundo constatou o pesquisador português Paulo Jorge Vieira (Centro de Estudos Geográficos / Universidade de Lisboa), ao etnografar, para sua dissertação de Mestrado, espacialidades gays e lésbicas na cidade de Lisboa – incluindo boates e locais de “engate” (termo do português lusitano para “pegação”), como o Jardim do Campo Grande.
“Cerca de 80% dos imigrantes que encontrei nesses espaços eram imigrantes brasileiros. Penso que isso tem a ver com questões culturais. Destes três países [Brasil, Cabo Verde e Ucrânia], o Brasil é o único que apresenta uma vivência gay e lésbica ativa em termos de locais direcionados à esta população e onde há um movimento LGBT organizado”, explicou Vieira em sua palestra “Orientação sexual, mobilidade e exclusão/inclusão: notas sobre imigrantes gays em Lisboa”, ministrada no CLAM na segunda-feira, 7 de novembro.
A constatação de uma presença mais marcante de imigrantes gays e lésbicas brasileiros nestes espaços o levou a afunilar a questão para o seu Doutorado, que investigará os modos de relação e a importância do cruzamento de diferentes formas de desigualdade e discriminação na construção de uma sociedade urbana cosmopolita. Nesse caso, o cruzamento entre as populações imigrantes e as populações LGBT, em especial, pois, no trabalho de campo, ele percebeu como os imigrantes brasileiros são estereotipados por grande parte dos gays portugueses. “É uma imagem racista, xenófoba, que reproduz estereótipos coloniais em relação ao corpo, carregada de uma ideia estereotipada do exotismo tropical brasileiro”, afirma ele, na entrevista a seguir.
Você diria que Lisboa é uma cidade gay friendly?
No quadro mundial de uma possível classificação de cidades, sim, pode-se dizer que Lisboa é uma cidade gay-friendly. Existem muitos locais de convívio e possibilidade das pessoas explicitarem um gesto de carinho sem sofrerem violência, por exemplo. Lisboa não é uma cidade agressiva para gays e lésbicas.
Mas em seu trabalho de campo você percebeu formas de exclusão e xenofobia no cotidiano de imigrantes gays lá em Lisboa, uma certa dinâmica de discriminação...
Sim, há uma discriminação de âmbito racial, interna à própria comunidade LGBT. Acho que a forma como são estereotipados os imigrantes brasileiros por grande parte dos gays portugueses é uma imagem racista, xenófoba, que reproduz estereótipos coloniais em relação ao corpo, relativamente a uma ideia estereotipada do exotismo tropical brasileiro. Tudo isso se reproduz no espaço gay.
Você diria então que o preconceito português contra os imigrantes gays brasileiros seria mais étnico do que sexual?
Eu diria que, dentro da comunidade LGBT, ele é essencialmente étnico, sendo mais étnico também na população em geral. A homossexualidade dos imigrantes brasileiros é menos percebida socialmente do que a cor da pele. A cor, a linguagem, o som da linguagem são determinantes.
O sotaque do português falado pelos brasileiros?
Exatamente. Ao avaliar as reações, percebe-se uma tendência a uma reação negativa.
Esse tipo de discriminação se dá em que contextos? Em que instituições? Escolas, instituições de saúde, trabalho...
Um pouco dentro de todas essas instituições. Há uma dificuldade para os imigrantes brasileiros no acesso ao aluguel de casas e ao mercado de trabalho, dependendo, obviamente, do tipo de mercado de trabalho que estamos falando. Houve basicamente duas ondas migratórias do Brasil para Portugal. A primeira, mais técnica, aconteceu entre os anos 80 e 90 e era formada por pessoas brancas que foram trabalhar como dentistas, designer e engenheiros de computação. A segunda onda migratória brasileira ocorreu no final dos anos 90 e foi marcada por pessoas de maior diversidade étnica e nível de escolaridade mais baixo, que foram trabalhar em empregos menos qualificados e de menores salários. É contra estes que a discriminação é mais marcante.
Pode-se enxergar isto como uma certa continuidade da relação colonial?
Vejo como a ideia de uma relação colonial que está no modo como intimamente nos relacionamos entre nós e com os outros. E que continua no modo como vivenciamos esse espaço pós-colonialista. A nossa relação é uma relação pós-colonial de 200 anos, relativamente pouco tempo. No entanto, é uma relação de continuidade de discursos coloniais, ou neocoloniais, eu diria.
Uma relação de superioridade entre colonizador e colonizado?
Superioridade em relação à colônia e em relação a outros países europeus também. Nosso pós-colonialismo é marcado pela ideia de que a colonização portuguesa não foi violenta. Esquecendo os milhões de escravos que vendemos e os índios que dizimamos, parece que não fomos violentos. Essa continuidade do colonialismo é clara no modo como, por exemplo, no nosso cotidiano, um gay português se relaciona com esse outro indivíduo, que é gay como ele, mas ao mesmo tempo é um não-português, não-branco, que é diferente e idiotizado... Isto não acontece sempre, não podemos nunca generalizar, mas ainda é muito comum.
Quais são os estereótipos mais comuns referentes ao imigrante gay brasileiro?
Os estudos sobre pós-colonialismo e sexualidade mostram que o colonizado é sempre visto como hiper-sexual.
Então o corpo é um dos lugares onde há um impacto dessa exclusão?
Sim, há a ideia de um corpo hiper-sexual. Esse discurso acontece quando, por exemplo, está ficando tarde da noite e se quer ter uma relação sexual. Você sabe que se for àquele determinado bar vai encontrar muitos brasileiros por lá, e a tua possibilidade de encontrar um parceiro sexual é grande. A construção deste estereótipo é presente. Mas isto é também usado pelo próprio imigrante brasileiro a favor dele próprio. Há uma construção mimética de estereótipo.
No entanto, no meio dessa dinâmica de discriminação percebi também que o português usa formas de cordialidade muito peculiares. Há uma ideia de que nós, portugueses, não somos racistas, de que tratamos todos por igual. Mas embora este seja o senso comum, a prática social é bastante diferente. Isso é perceptível em pequenos formatos no cotidiano, na ideia de que existem espaços segregados socialmente, por exemplo.
O contexto de uma cidade pequena é menos propenso à aceitação da homossexualidade, por isso a identidade gay é, antes de tudo, uma identidade de grandes centros urbanos. Assim, muitas pessoas costumam mudar para uma outra cidade ou país para assumir sua homossexualidade, o que fica evidente nos relatos dos brasileiros entrevistados em sua pesquisa. Qual a relação do processo de mobilidade com o coming out, com a saída do armário?
Os processos de coming out, na maioria dos casos, estão relacionados aos processos de mobilidade. Estudar numa escola e passar para o Ensino Superior – e isso em Portugal significa, em muitos casos, mudar de cidade – para muita gente significa quebrar as regras de controle e segurança existentes na família e poder vivenciar sua sexualidade de modo diferente. Há pessoas que já “experenciaram” sua homossexualidade, mas por conta de sua rede de amizades e por sua família, não a vivenciaram de forma plena em seu território de origem. E não quer dizer que isso vá acontecer apenas quando as pessoas se mudam para um grande centro urbano europeu. Esta mobilidade pode acontecer de uma pequena vila no interior de um estado brasileiro para uma cidade média deste mesmo estado. São processos que têm uma geografia porque são móveis, se deslocam. Mas são, ao mesmo tempo, sociais.