Para a antropóloga Cláudia Fonseca, professora no programa de pós-graduação em antropologia social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), escandalizar-se com a prostituição, colocando-a num campo absolutamente a parte, não ajuda a aprofundar a reflexão sobre o assunto.
“A uma certa distância, via romances e jornais, o assunto é sem dúvida, além de fascinante, de digestão relativamente fácil, com imagens previsíveis de erotismo e transgressão”, diz ela no início do artigo “A morte de um gigolô: fronteiras da transgressão e sexualidade nos dias atuais”, um dos textos da coletânea Sexualidade e Saberes: convenções e fronteiras(CLAM / Editora Garamond), fruto do seminário realizado em 2003 em Campinas, organizado em parceria com o Núcleo de Estudos de Gênero PAGU (Universidade Estadual de Campinas).
Em meados da década de 1990, Cláudia realizou uma pesquisa etnográfica com algumas prostitutas na cidade de Porto Alegre, no sul do Brasil. Dez anos depois, a antropóloga voltou a campo e reencontrou “antigos conhecidos”. Seu olhar de “dez anos depois” não é dirigido propriamente para as mudanças no campo da prostituição – “que são poucas”, frisa a pesquisadora – mas para o ocorrido na vida das mulheres entrevistadas em seu primeiro trabalho. O retorno valeu para confirmar a idéia que a acompanhava desde os primeiros meses da pesquisa de campo: “Essas mulheres têm vidas, em muitos aspectos (experiências familiares e dilemas pessoais) não muito diferentes das de suas contemporâneas mais convencionais”, narra ela.
Nesta entrevista, a antropóloga fala sobre a normalidade dessa atividade profissional e sua relação com a pobreza, e também da perspectiva do olhar do pesquisador diante do assunto. “Ao se aproximar da vida das “profissionais do sexo”, em carne e osso, o pesquisador complica o quadro, ao descobrir que o exótico não é tão exótico assim”.
A prostituição, alvo de intensa rejeição no passado, ainda pode ser considerada atualmente uma expressão transgressiva?
Evidente. Quando uma potência mundial, como os Estados Unidos, passa a negar financiamento para o combate de AIDS a qualquer organização que trabalha com profissionais do sexo, é uma prova cabal do extremo estigma que pesa sobre essa atividade entre personagens muito influentes do mundo contemporâneo.
A sra. refuta argumentos reducionistas (como os psicológicos) geralmente usados para “explicar” a entrada na prostituição – abuso sexual na infância etc. – que acabam por reduzir a prostituição a uma patologia familiar. Por outro lado, as mulheres retratadas não se apresentam como vítimas e esforçam-se para se mostrar como pessoas “normais”. Esses relatos não ajudam a banalizar a profissão?
É minha firme convicção que a grande maioria de prostitutas são pessoas “normais”. Provavelmente, vai se encontrar entre um determinado grupo de prostitutas a mesma proporção de neuróticas, de expansivas e de tímidas, de chatas e de simpáticas (e de abusadas sexualmente) que se encontraria em qualquer outro grupo de mulheres de idade e classe semelhante.
É verdade que a maioria provavelmente não “escolheu” ser prostituta – da mesma forma que mulheres não “escolhem” ser faxineira, catadora de papel, ou mesmo balconista ou garçonete etc. Não são empregos “glamourosos”, que inspiram grande admiração. A prostituição inspira, pelo contrário, preconceitos constantes e, nesse sentido, as mulheres têm que se esforçar mais do que outras para mostrar que são normais.
Outro discurso corrente por parte de muitas prostitutas atribui a falta de alternativas como motivo para o exercício da prostituição. Como classificar essa narrativa? Seria este um argumento válido para “explicar” a entrada na atividade?
Considero o desemprego o maior problema da atualidade. Recentemente em Porto Alegre, tivemos um concurso público para servente de escola, exigindo apenas o primeiro grau completo. Apareceram 24 mil candidatos para quatro vagas. Cerca de 60% da população urbana está trabalhando na economia informal. Não é fácil para qualquer pessoa, nesse contexto, viver e manter uma família. Tem que ter iniciativa, superar preconceitos contra, por exemplo, trabalho manuais pouco prestigiosos.
Creio que poucos pesquisadores discordariam quando relaciono a pobreza ao volume de prostitutas. Antes de medidas de proteção social na Inglaterra, por exemplo, a prostituição era endêmica. Historiadores falam de 5 a 10% da população de mulheres adultas em Nova Iorque no início do século XX, e até 30% das mulheres adultas no México pré-revolucionário. Claro que é uma estimativa alta, mas digamos que as circunstâncias históricas de pobreza aliada a uma moralidade sexual conservadora para as mulheres “honestas” eram muito “favoráveis” à proliferação dessa atividade laboral. Vale lembrar que relaciono pobreza a prostituição porque não trabalhei com garotas de programa de alta classe. Existem pesquisadores que podem falar dessas profissionais, talvez com avaliações diferentes das minhas.
Hoje em dia, há um esforço, presente nos discursos de ativistas e ONGs que trabalham com profissionais do sexo, no sentido de mostrar a normalidade das prostitutas. Seria esta uma imagem “maquiada”, estrategicamente usada para minimizar a discriminação e ainda alcançar direitos e respeitabilidade, ou seria a imagem pela qual a atividade deveria ser realmente encarada?
Sempre existe uma “maquiagem” da parte de qualquer grupo de ativistas querendo diminuir a discriminação e promover os direitos da categoria com a qual trabalham. Tendem a apresentar os membros de sua categoria como o oposto total dos estereótipos negativos: são lindos, limpos, honestos e cidadãos exemplares. Falamos em “identity politics” em inglês e é uma tática política absolutamente válida – para negros, homossexuais, prostitutas etc. O problema é quando se vende uma imagem tão idealizada que nenhum ser humano consegue estar à altura. Aí, a idealização pode ser como um tiro que sai pela culatra: “Essa não é santa, então é (embora exceção) demônio”. De fato, as pessoas são complexas, com trajetórias diferentes. Têm altos e baixos, momentos da vida... Creio que o grande desafio é não ceder a nenhum estereótipo – nem negativo, nem idealizado.
Qual deve ser a perspectiva do olhar do pesquisador diante disso? Deve-se relativizar essa normalidade? De que forma?
O cientista social considera as pessoas em função do lugar e da época em que vivem. De onde vieram? Para onde pretendem ir? Qual a conjuntura econômica e política que dita os limites de suas possibilidades? Quais as formas de estigma e de repressão (policial e outra) que pesam sobre a atividade em questão? Como esse estigma acaba criando os males que pretende sanar?
Mas também o cientista social procura entender, através da convivência e da escuta, quais as diferentes concepções de normalidade. Creio que todo grupo tem critérios de “normalidade”, isso é um fenômeno social. Cabe ao pesquisador entender como se formula essa moralidade do grupo. Por extensão, o pesquisador deve também exercer o “olhar reflexivo” para pensar sua própria noção de normalidade. As definições são várias – o que um grupo aceita como banal, outro entende como chocante. Reconhecer isso é “relativizar”? Então, sim, o pesquisador deve relativizar. Na minha opinião, o pesquisador que não coloca em dúvida suas próprias pré-noções não está procedendo conforme os princípios da ciência contemporânea. A partir daí, deve-se levar em consideração a extrema desigualdade dessa sociedade que decreta a normalidade, tal como definida por determinada classe, como a “verdadeira” normalidade. Enfim, não se trata jamais de uma relativização “vale tudo”. Trata-se de um questionamento dos contextos e dos jogos de poder que circundam as diferentes definições do normal.
Os discursos das mulheres entrevistadas em seu trabalho mostram traços de uma moralidade conservadora. Quando a sra. retornou ao campo, quase dez anos depois de sua primeira pesquisa, sabe-se que algumas tinham casado e diziam-se felizes – e “felicidade” para elas, segundo seus relatos, equivalia a casar e ter filhos. Este é apenas um discurso politicamente correto ou elas têm mesmo um critério convencional de felicidade, parecido com o de milhões de outras mulheres? Seria mera ilusão a imagem transgressora, mítica e atraente das prostitutas?
Existe todo tipo de prostituta: algumas mais, outras menos conservadoras. Então, por que sua definição de felicidade seria diferente? Muitas prostitutas são extremamente fiéis a seus namorados e maridos. Elisiane Pasini, antropóloga especializada nesse tema, aponta para a maneira em que prostitutas deixam de usar a camisinha quando têm relações com seus maridos. Essa “intimidade” é símbolo de privilégio, e “infidelidade” ocorre quando se transgride essa regra da camisinha. Temos aqui mulheres com noções bastante convencionais de fidelidade, mulheres que podem ser muito ciumentas etc. Agora, entre as pessoas com quem trabalhei não se tem noção de “carreira” feminina. A não ser que entrem numa carreira de médica, juiz, professora universitária (o que é praticamente impossível para a maioria das mulheres das camadas trabalhadoras da população).
Em geral, as mulheres não aspiram trabalhar fora toda vida. A grande esperança delas é realizar aquele modelo – homem provedor, mulher do lar. O problema então não é necessariamente ser prostituta, mas, sim, trabalhar fora, querendo ou não querendo. Quando dizem “Quero casa, marido, filhos”, estão pensando nesse modelo. Claro, conheço mulheres que, depois de realizarem o ideal, começam a ficar entediadas em casa e querem voltar a trabalhar. Mas aí se torna uma opção a ser ponderada, não uma obrigação. Acho que as mulheres querem ter opções e, no Brasil contemporâneo, é o que mais faz falta.
Qual sua opinião sobre projetos políticos que propõem a regulamentação da atividade de prostituta como profissão?
Existem diversas ONGs dirigidas por profissionais do sexo que trabalham com esse assunto, fazendo um excelente trabalho. Pelo que entendi, propõem uma descriminalização de qualquer atividade ligada à prostituição. Por enquanto, o Código Penal ainda criminaliza os terceiros que lucram com o trabalho da mulher – os hotéis, boates e, deveríamos incluir, os jornais, sites na internet e donos de propriedade nas galerias do centro da cidade que alugam peças para as prostitutas. De fato, parece irrealista uma lei que diz que mulher pode se prostituir, mas ninguém pode dar cobertura. Descriminalização não significa regulamentação. A maioria das ONGs com as quais tive contato são absolutamente contra a regulamentação – ficha para prostituta, como existe no Uruguai, por exemplo – que restringe as atividades delas a certas zonas e faz exigências médico-militaristas.
Agora, não elimino a possibilidade de máfias criminosas que devem ser combatidas. Mas esses grupos lidam com “transgressões” muito além da prostituição. O problema é que a polícia em geral não vai atrás dessas máfias, mas sim das pessoas mais fracas, menos organizadas. O estigma é usado não para controlar focos sérios de aliciamento e violência, mas para reprimir pessoas que estão “batalhando” por conta própria, tentando com isso levar vidas dignas.