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Saúde e prazer valorizados
O ano de 2010 pode ser considerado como um marco para a valorização do conceito de saúde sexual e suas implicações concretas para o cotidiano dos cidadãos. O dia 04 de setembro foi estabelecido pela Associação Mundial para a Saúde Sexual (WAS) como o Dia Mundial da Saúde Sexual. A comemoração simboliza a importância de um tema que foi sendo inserido gradualmente dentro das discussões sobre saúde nos últimos anos. Ao final da Segunda Guerra Mundial, com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde tornou-se um conceito mais amplo que passou a incluir o bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de saúde. Antes dessa reavaliação, a saúde era um campo pensado predominantemente sob a perspectiva da higiene, da saúde pública e da eugenia. Nos anos 1960 e 1970, a sexualidade foi ganhando novos contornos e passou, na esteira da explosão da contracultura e do surgimento da pílula anticoncepcional, a se dissociar da lógica reprodutiva. O discurso moral, tradicionalista e religioso se enfraqueceu, novos comportamentos surgiram e houve um forte movimento em favor de uma maior liberação sexual. A idéia da revolução sexual emerge nessa época, e os movimentos gays e feministas se fortalecem ainda mais. Nesse período, a sexologia inaugura um novo campo de conhecimento e estudo, sinalizando uma maior valorização do prazer e de uma vida sexual mais satisfatória. Aspectos médicos e clínicos relacionados ao sexo tornam-se mais relevantes: a disfunção sexual ganha vulto nesse contexto e adquire um papel fundamental, por exemplo, na vida do casal em razão da importância que a sexualidade passa a desempenhar no casamento. Por essas duas vias, a política – personificada pela militância em favor dos direitos LGBT e da diversidade sexual – e a médico-psicológica (ou clínica) – focada nas pesquisas científicas e nos laboratórios – a questão sexual entra irreversivelmente na agenda pública. Em 1999, a Associação Mundial para a Saúde Sexual publica a Declaração dos Direitos Sexuais e legitima a bandeira dessas duas vertentes. A escolha de um dia destinado a valorizar a saúde sexual contribui para a consolidação do tema como uma área de conhecimento e estudo. No entanto, a empreitada ainda exige mais divulgação e esclarecimento. Em entrevista exclusiva ao CLAM, Jaqueline Brendler, especialista em sexualidade humana, membro do Comitê Executivo da Associação Mundial para a Saúde Sexual e responsável pela comemoração da data no Brasil, afirma que o dia “é uma maneira de chamar a atenção dos governantes, da população e do meio médico sobre o significado do termo, que não é fácil de ser atingido”. O que o termo “saúde sexual” significa hoje em dia? Penso que a declaração da Organização Mundial da Saúde é um bom conceito, que está totalmente desenvolvido na Declaração do Milênio” da World Association for Sexual Healh (WAS).“Saúde sexual é um estado de bem estar físico, mental e social em relação à sexualidade: não é meramente a ausência de doença, disfunção ou enfermidade. Saúde sexual requer uma respeitosa e positiva abordagem em relação à sexualidade e aos relacionamentos sexuais, como também a possibilidade de ter prazer e experiências sexuais seguras, livre de coerção, discriminação e violência. Para a saúde sexual ser obtida e mantida, os direitos sexuais de todas as pessoas devem ser respeitado, protegidos e cumpridos.” Quais as principais dificuldades para se instituir o tema da saúde sexual não só na agenda dos governos e Estados como também para convencer a população sobre um assunto que ainda é tabu? Os políticos e a população têm dificuldade de entender que o ser humano é um ser indivisível, apesar de a medicina estar dividida em especialidades (visando um aprofundamento do conhecimento). Então, nesse ser indivisível a saúde sexual ou a ausência dela terá efeitos positivos ou negativos sobre a pessoa. A senhora acredita que é possível uma compreensão sobre o sexo para além do senso comum que estamos habituados a ouvir? O sexo possui muitos significados. Contudo, a sua associação com o prazer e a diversão é recente, desde o advento da pílula anticoncepcional. Essa é a associação “politicamente correta” e a mais possível de ser verbalizada publicamente. Mas é a versão internalizada apenas em pessoas que possuem saúde sexual. Para a maioria das pessoas, o sexo foi aprendido e inserido numa cultura repressiva e conectado a pecado, à sujeira, à sacanagem. Ou seja, uma desvalorização do contexto maior do sexo que é a sexualidade e que envolve as emoções, o afeto, a comunicação, as fantasias e o prazer. Outra questão central da sexualidade é que ela é incontrolável – não aceita ordens racionais. Nós, para vivermos em sociedade, utilizamos o nosso córtex cerebral para tomarmos desde decisões simples (por exemplo, para atravessar uma rua, olhamos para a direita, esquerda e para frente antes de por o pé fora da calçada) às mais sofisticadas (como avaliar o risco de uma ação, subir ou descer e o melhor momento de vender); ou seja, nos habituamos a usar o nosso lado lógico e racional. O exercício da sexualidade é, por outro lado, emoção pura. Por esse motivo, as pessoas têm certo temor da sexualidade. O melhor caminho envolve várias estratégias, desde a comemoração por décadas do Dia Mundial de Saúde Sexual, promovido pela WAS com o apoio de seus parceiros, a discussão desse tema nas várias mídias e a educação dos adultos para que possam educar seus filhos dentro de uma visão saudável de sexualidade. Ao longo dos anos, a inserção da sexualidade na agenda pública se deu por meio de dois caminhos: pela via política, com as movimentações de grupos e organizações de indivíduos que operam em favor da causa; e pela via científica, centrada nas questões médicas e clínicas. Em que medida, atualmente, os avanços na área da saúde sexual podem ser alcançados a partir das contribuições dessas duas vertentes? Como aproveitá-las de modo que uma não prevaleça sobre a outra e as discussões não se tornem parciais e fragmentadas? A saúde sexual compreende a presença de várias condições e tem convergência política e médica no que se refere à ausência de preconceitos e discriminação em relação à orientação sexual e à ausência da homofobia, pelo menos para os mais evoluídos no assunto. Infelizmente não é a maioria, embora seja o “publicamente divulgado”. A ciência médica sabe que os problemas sexuais e a presença do prazer influenciam a qualidade de vida (embora exista um número insuficiente de médicos com dedicação exclusiva à sexologia no Brasil). Mas não há políticas públicas eficazes para a prevenção ou tratamento das disfunções sexuais e para a promoção do prazer, pois há poucos ambulatórios de sexologia nos serviços públicos no Brasil. Nossos governantes parecem ter mais facilidade de aceitar o prejuízo à sexualidade ligado à aquisição de DSTs, como é internacionalmente reconhecida a boa atuação do governo brasileiro em relação à distribuição gratuita de drogas contra o HIV e à vacinação contra Hepatite B. Há convergência política e médica em relação à facilidade em aceitar etiologias (estudo das causas) orgânicas para os problemas sexuais e dificuldade de lidar com as psicológicas e emocionais. Outra convergência é na questão do sexo seguro, no qual médicos e governo lutam pelo uso da camisinha. Penso que o modo ideal da vertente política e médica serem respeitadas é cada uma ouvir as novidades ou mudanças incorporadas pela outra e refletir sobre o assunto. Cada vez mais o governo brasileiro está traçando as suas políticas de saúde baseadas em pesquisas populacionais por ele realizadas, o que aumenta a chance de sanear problemas importantes. Mas uma deficiência importante ainda é a falta de ambulatórios de sexologia públicos. O direito à saúde sexual, estabelecido como um direito humano elementar está inserido, em vários países do mundo, em contextos cujos valores culturais, morais e religiosos muitas vezes são hostis. Qual a sua expectativa em relação à consolidação do direito à saúde sexual como um tema a ser assimilado e encarado como essencial, da mesma forma que é, por exemplo, a educação? Muito preconceito deverá primeiro ser vencido em relação aos direitos humanos, depois aos direitos sexuais para que seja possível a consolidação do direito à saúde sexual. Ainda vivemos num mundo no qual há importantes questões de gênero e de equidade entre homens e mulheres a serem resolvidos. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ainda aponta as mulheres brasileiras como as principais responsáveis pelo trabalho doméstico, o que inclui o cuidado com os filhos, apesar da inserção no mercado do trabalho. Há pesquisas que apontam que a defasagem salarial para o mesmo cargo das mulheres em relação aos homens no Brasil é acima de 30%. Um dos itens em que o Brasil melhorou nos últimos anos é a questão da violência contra a mulher, com a Lei Maria da Penha e as delegacias especiais em muitos estados do país para mulheres vítimas de qualquer tipo de violência. O Brasil, apesar de ter no exterior uma imagem liberal em relação à sexualidade, é um país de valores conservadores, pois valoriza o sexo ligado ao amor e à fidelidade no contexto de casal (pelo menos no discurso das pesquisas) ao mesmo tempo em que aprovou há várias décadas o divórcio. Diferente, por exemplo, do Chile, onde a lei do divórcio tem menos de 10 anos. Sobre a homossexualidade, há 20 anos deixou de ser doença, de ter um CID (classificação internacional de doenças), mas ainda há cinco países no mundo que condenam a homossexualidade com pena de morte. A Argentina já aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas penso que essa luta levará anos no Brasil. Publicada em: 10/11/2010 |