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Brasil
Prazer em público
Em seu conceito mais usual, “pegação” é um termo empregado para designar a prática sexual anônima, efêmera e fugaz entre homens que exercem práticas homoeróticas, realizada em espaços simbolicamente demarcados nos grandes centros urbanos, como banheiros de shopping centers, parques, praias, saunas, cinemas e clubes de sexo – espaços conhecidos por quem os freqüenta como “locais de pegação”, informalmente apropriados para intercursos sexuais furtivos e sem prévia vinculação afetiva. O sociólogo norte-americano Laud Humpreys tem sido considerado o pioneiro neste tipo de estudo devido à Tearoom Trade, pesquisa que tratou dos encontros sexuais entre homens em banheiros públicos nos Estados Unidos, publicada em 1970. Mesmo sendo possível afirmar que no Brasil as investigações sobre interações de sexo ocasional entre homens em lugares públicos e semi-públicos sejam escassas nas ciências sociais, já desde os anos de 1980 aparecem pesquisas importantes, como O negócio do Michê, de Nestor Perlongher (1989), sobre prostituição masculina em São Paulo, e No escurinho do cinema, de Veriano Terto Jr. (1989), sobre a interação sexual entre freqüentadores de um cinema de filmes pornográficos no Rio de Janeiro. Vale a pena destacar também No escurinho do cinema: cenas de um público implícito, de Alexandre Vale (2000), olhar sobre a prostituição travesti e práticas homoeróticas em um “cinemão” em Fortaleza; e Dark Room Aqui: um ritual de escuridão e silêncio | | target='_blank'>Dark Room.pdf | Dark Room Aqui: um ritual de escuridão e silêncio | |, de María Elvira Díaz-Benítez (2008), sobre práticas de sexo casual entre homens no quarto escuro de uma boate carioca. Livros como Locas, Chongos y Gays, de Horacio Sívori (2004), e Fiestas, baños y exilios, de Flavio Rapisardi e Alejandro Modarelli (2001), abordam a prática da pegação ou “yiro” entre homens na Argentina. Alexandre – Em relação aos tipos de locais de pegação estudados em minha dissertação, constatei que aqueles localizados em espaços públicos (por exemplo, banheiros de parques e praças) ou semi-públicos sem controle de acesso (por exemplo, banheiros de supermercados e galerias) foram representados como locais ruins para a pegação por serem freqüentados, majoritariamente, por um público pouco desejável (homens feios, velhos, pobres, mendigos etc.), por serem insalubres (pouco ventilados, iluminados, sujos etc.) e por serem considerados inseguros (por registrarem roubos, batidas policiais etc.). Os demais locais de pegação semi-públicos (cinemas, saunas, banheiros de shoppings etc.) foram representados mais positivamente exatamente por apresentarem características opostas às descritas anteriormente: seriam melhor freqüentados, limpos e mais seguros. Entretanto, apesar dessas diferenças estarem claramente marcadas nos discursos, é importante ressaltar que foi observada uma heterogeneidade de público em todos os espaços descritos, principalmente nos espaços de pegação em locais públicos, o que explicaria as descrições estigmatizadas e negativas desses locais. Camilo – Um primeiro aspecto que pode ser ressaltado quanto às diferenças apontadas pelos meus colaboradores de pesquisa entre locais comerciais e não-comerciais para encontros sexuais entre homens é a interpretação de que os primeiros proporcionam relativa segurança em relação aos segundos. A pegação em locais públicos, tais como banheiros ("banheirões"), é tida como mais "perigosa" relativamente aos estabelecimentos comerciais para sexo, seja quanto à possibilidade de atuação da polícia, seja quanto à possibilidade de assaltos ou mesmo de vexação por parte dos demais usuários destes espaços. Há uma noção de exposição pessoal e corporal fronteiriça em locais públicos que, ainda que possa ser tomada como erótica ou excitante por conta do perigo que evoca, e pela possibilidade do voyerismo e da exibição, ainda assim traz implicações do ponto de vista da segurança que não são menosprezadas por seus sujeitos. Néstor Perlongher já dizia, em O Negócio do Michê, que a "michetagem" em locais públicos figurava na escala mais baixa do "negócio", e creio que isso tem muito a ver com questões simbólicas - na pegação em espaços públicos, a atuação de marcadores sociais de diferença que podem operar estabelecendo as fronteiras do legítimo e do ilegítimo, do inteligível, ainda que não esteja ausente, é potencialmente mais "descontrolada" do que em locais onde se paga para entrar e onde é possível, de certo modo, "selecionar" a clientela. As falas que apontam para a falta de "limpeza" dos banheiros públicos, em comparação com os espaços fechados, são significativas nesse sentido e evocam que as fronteiras estão borradas neles em vários sentidos. Outra interpretação tecida por meus colaboradores diz respeito à relativa precariedade dos banheirões - a diferença qualitativamente percebida entre um sexo fugaz, em pé, dentro de um reservado, e aquele praticado em locais que contam com infra-estrutura, e limpeza, para possibilitá-lo. Como esses espaços são classificados por seus freqüentadores em relação à localização, segurança e limpeza? Alexandre – Em Belo Horizonte, a maior parte dos espaços de pegação descritos e analisados estão localizados em uma região chamada de "centro expandido" da cidade, uma região relativamente pequena, com área aproximada de uns quatro quilômetros quadrados. A localização desses locais dentro dessa região parece não ser uma variável significativa para a representação dos lugares de pegação em si, a não ser do ponto de vista da sua acessibilidade. Ou seja, as representações produzidas sobre esses locais parecem que não dependem tanto da sua localização, mas, sobretudo, da sua natureza, ou seja, se são públicos ou semipúblicos, o perfil predominantes dos seus freqüentadores, a sua limpeza e segurança. As representações relativas à segurança e limpeza dos lugares parecem estar intimamente associadas a variáveis muito mais subjetivas do que objetivas. Ou seja, os locais são descritos como limpos/sujos, seguros/inseguros, dependendo do tipo de público que o freqüenta majoritariamente, havendo uma forte correlação com a variável de classe social. Camilo – No registro das diferenças que podem implicar em hierarquizações contextuais, cabe mencionar a localização dos clubes de sexo em diferentes regiões da cidade de São Paulo. Os clubes do centro da cidade freqüentemente apareceram nas conversas como lugares "decadentes", "sujos", "mal freqüentados". Para muitos entrevistados, neles não haveria "gente bonita" ou "que se cuida". Muitos me disseram que neles não encontram um público "desejável", mas apenas "gente velha", "feia", "desinteressante". Os homens "desejáveis" ou "iguais a eles próprios" estariam, para alguns entrevistados, nos estabelecimentos que estão fora do centro da cidade, que por cobrar entrada mais cara acabariam "selecionando o público pelo preço". Não é banal que os clubes localizados na região central, com preços de entrada mais acessíveis, sejam tomados como "decadentes". Essas idéias repetiram-se à exaustão. A polarização entre os clubes a partir da região da cidade onde estão localizados e seus preços de entrada, aliada às representações acerca das diferenças entre o público que os freqüenta, ajudam a entender certas distinções num mapa de hierarquizações contextuais que é possível apontar a respeito desses locais e de seus sujeitos. Os clubes de sexo paulistanos são tomados por muitos entrevistados como lugares "mistos". A segmentação desse mercado em São Paulo dá-se também com base em escolhas eróticas (sexo em grupo, em público, experimentações sexuais), mas em relação aos locais para sexo tidos como "tradicionais" – saunas, cinemas pornôs. Entre os próprios clubes de sexo e percepções sobre seu público, no entanto, essa segmentação parece operar mais em termos de classe, e nesse sentido tanto a localização dos estabelecimentos (no centro ou fora dele) quanto o preço de entrada selecionam públicos distintos, para muitos dos entrevistados. “Só os viris e discretos serão amados?”, perguntava-se o antropólogo Sérgio Carrara em artigo recente. Parafraseando sua expressão, nos espaços estudados, há alguma valorização da masculinidade em relação às preferências erótico-sexuais dos freqüentadores de ambos os tipos de interação? Alexandre – Acredito que sim. Nos discursos e representações que analisei há evidências que apontam que a masculinidade é uma característica valorizada nos espaços de pegação. Inclusive a presença de travestis ou transexuais nesses espaços é fortemente criticada e rejeitada pelos indivíduos que tiveram seus discursos analisados. Também são representados negativamente homens com corpos pouco masculinos (gordos ou pouco malhados) ou com voz ou trejeitos femininos. Além de serem descritos como pouco desejáveis, esses sujeitos são responsabilizados por colocarem em risco a prática da pegação nesses espaços pelo fato de serem pouco discretos. Eles seriam os culpados por afugentar os "homens" e aumentar a fiscalização e policiamento dos locais. Camilo – Aqueles com quem pude dialogar ao longo do trabalho de campo enfatizaram que, nos clubes de sexo, os "corpos que mais importam", para utilizar a expressão de Judith Butler, são os mesmos de outros contextos de sociabilidade e "caça" (cruising) entre homens: jovens, bonitos, bem-dotados, másculos... Contudo, a partir dos diálogos e das minhas observações em campo percebi que essa reiteração de convenções tem suas nuances. As falas deles apontam muito mais para uma idéia de controle corporal no sentido de seus "excessos”. Expressões como "muito gordo", "muito barrigudo", "muito velho" foram largamente utilizadas para descrever aqueles que não "fazem sucesso" algum nestes estabelecimentos. No que diz respeito à valorização discursiva de estereótipos de virilidade na contextualização dos sujeitos e corpos nos clubes de sexo, um primeiro passo é dissociar a penetração do corpo de sua "feminização". Um segundo passo é pensar que quando esses homens se dizem "machos" não estão se opondo necessariamente à "feminilidade". A rejeição aqui é de quaisquer atributos – corporais, gestuais, comportamentais, relativos a sentimentos – que possam ser relacionados ao estereótipo do "efeminado". A valorização do "macho" e os discursos que constituem o macho como objeto de desejo não se opõem à "feminilidade", no singular, e muito menos a uma feminilidade qualquer, mas sim à "bichice", à "efeminação". A grande maioria dos colaboradores da pesquisa ressaltou, ao falar sobre suas preferências eróticas, que preferem homens masculinos, utilizando-se de uma série de atributos e características estereotípicas para explicar o que seria essa masculinidade. Além disso, a percepção geral é a de que esse é um mercado voltado para homens interessados em sexo com outros homens tidos como masculinos, "machos". O gênero aparece aqui então como mais um marcador a informar a inteligibilidade dos sujeitos e dos corpos que importam nos clubes de sexo estudados, na chave que venho propondo, que é a do controle das práticas corporais. Os corpos também estão aqui controlados do ponto de vista do gênero – os "excessos" a serem contidos aqui são aqueles que possam evocar "efeminação". Mas é preciso ter em mente que a sociabilidade nos clubes estudados não é restringida ao sexo e à "caça". Há certa separação entre a "área do bar" e os espaços que poderíamos denominar como "área de práticas" nesses estabelecimentos. No bar, nem sempre se "faz a linha de macho", como disseram alguns colaboradores da pesquisa. A própria idéia do "fazer a linha" implica numa certa noção de "teatralidade". As falas de muitos entrevistados evocam a idéia de que a valorização da virilidade nos clubes de sexo teria muito a ver com certa noção de "fantasia". Não se trata necessariamente, da perspectiva de meus colaboradores, de afirmar uma "essência" masculina estável, mas de "performá-la", ou de acionar em situações eróticas justamente aqueles atributos que possam ser lidos como viris do ponto de vista "hegemônico". É possível, talvez, apontar a performatividade de estereótipos de gênero em clubes de sexo masculinos como práticas potencialmente subversivas, ao expor o "masculino" como uma espécie de pastiche. O quanto os marcadores de raça/cor e classe social (além de estilo) estão presentes em tais representações e qual a sua importância? Alexandre – Curiosamente, ao contrário do marcador de classe social, as diferenças “raciais” não foram freqüentes nos discursos analisados. A “cor” dos freqüentadores, quando presente nos discursos, era apenas mais uma das características utilizadas para descrevê-los, não sendo associada a nenhum padrão representacional específico. Nesse sentido, o uso de termos como “branquinho”, “loirinho”, “moreno”, “negão” não estavam associados a outras características, tais como a beleza ou o “dote” desses sujeitos, como se poderia supor, a priori. Já as descrições relativas à classe social, ou “aparência de classe” dos freqüentadores (termo que prefiro), são fundamentais para compreender a construção das representações sobre os lugares de pegação e suas características. Observou-se um padrão interessante: todos os locais de pegação que foram descritos como sendo freqüentados por mendigos ou pobres, principalmente banheiros públicos de parques e algumas ruas de pegação, foram representados como sujos e/ou inseguros. Camilo – A grande maioria dos clientes do clube mais caro dentre os que pesquisei, o qual está localizado em um bairro de camadas médias, é "branca". O número de freqüentadores "pretos" ou "pardos", embora sempre menor que o de "brancos" em todos os clubes, é maior naqueles localizados no centro da cidade de São Paulo. A intersecção entre classe e raça/cor aparece quando se observa que quanto mais elitizado o local (seja quanto à localização, seja quanto ao preço), mais evidente a presença de homens "brancos" e ausência de "pretos" ou "pardos". A associação entre raça/cor negra e virilidade não é novidade em análises das ciências sociais no Brasil e surge, por exemplo, em estudos de contextos de trocas sexuais entre homens na vida noturna de grandes cidades, como os de Nestor Perlongher e Laura Moutinho. Alguns entrevistados realçaram essa associação estereotípica entre raça/cor e virilidade/masculinidade. O interessante então é perceber como marcadores e estereótipos de classe, raça/cor, gênero e mesmo de idade estão intrigantemente imbricados na constituição discursiva da inteligibilidade dos sujeitos e na materialização dos corpos que importam nos clubes de sexo para homens. Locais de pegação são frequentemente associados à promiscuidade e a vulnerabilidades em relação à violência e às DSTs/Aids. Esse aspecto foi explorado em suas pesquisas? Como os freqüentadores lidam com essas questões? Alexandre - No meu trabalho optei em não trabalhar com representações de risco ou a vulnerabilidade em relação às DSTs/Aids na perspectiva dos sujeitos que praticam pegação, já que esse recorte ampliaria demais o problema de pesquisa e a hipótese que tinha me proposto investigar em um primeiro momento. O que não significa, evidentemente, que esta não seja uma questão importante de ser investigada. Ao rever os discursos que analisei, principalmente os extraídos dos fóruns de discussão das comunidades virtuais selecionadas, percebe-se um número razoável de posts que exaltam a prática de sexo oral e/ou anal com estranhos sem o uso de preservativo (conhecida como barebacking). Por mais que se tenha em mente que se tratam de discursos, e como tal, passíveis de conter elaborações fantasiosas ou exageradas, não podemos ignorar o fato de que discursos contêm representações que efetivamente podem direcionar as ações individuais e coletivas, tal como demonstram alguns estudos sobre representações e comportamento de risco, dos quais podemos mencionar os produzidos por Jurandir Freire Costa. Assim, o primeiro passo para elaborar e implementar ações de intervenção mais efetivas para a redução da vulnerabilidade de sujeitos que praticam pegação, seria compreender as representações de risco e vulnerabilidade que possuem. Em relação à violência, alguns relatos (tanto entrevistas quanto os extraídos das comunidades virtuais) apontam casos de violência física ou constrangimento público por parte de policiais ou por fiscais (no caso de banheiros de shoppings e supermercados, por exemplo), sendo raros os casos de violência produzidas por outros atores. Camilo – A interpretação a que cheguei é a de que as experiências sexuais vividas nos clubes de sexo "à meia-luz" estão não apenas norteadas por marcadores sociais de diferença, mas também pela idéia do controle dos seus "excessos", tanto de práticas quanto de corpos. É nesse sentido que algumas falas de entrevistados acerca do uso de drogas recreativas e de preservativos me ajudaram nas interpretações propostas. Muitos deles relataram como os próprios freqüentadores acabam ajudando em certo sentido a "vigiar" acerca do uso de preservativos e mesmo de drogas recreativas ilícitas. Em campo, muitos colaboradores vieram me contar quando viam alguém propondo, ou efetivamente "transando sem camisinha". Uma espécie de "controle comunitário" que, nas palavras dos donos dos clubes, os "freqüentadores mais assíduos ajudam a exercer". A minha questão na pesquisa não era saber se o uso de preservativos era ou não freqüente nos clubes de sexo, ou compreender quais seriam os fatores contextuais que levariam ou não a esse uso ou não-uso. Essa questão escapava ao escopo da investigação, embora eu reconheça que este seja um tema importante e que mereça a nossa atenção enquanto cientistas sociais. Para os objetivos desta investigação em particular, as falas sobre o uso de preservativos, assim como de drogas recreativas ilícitas ou mesmo de álcool, auxiliam na interpretação de que essas práticas "potencialmente descontroladas" estão sujeitas nos clubes a uma espécie de "controle", de "vigilância" do ponto de vista de seus "excessos". E minha proposta interpretativa é a de que o significado desse controle, no limite, é dar aos clubes legitimidade como um mercado erótico possível, viável - do mesmo modo como o controle corporal, baseado no gênero e em outros marcadores de diferença - estabelece os parâmetros para os limites dos "corpos que importam" nos clubes. Publicada em: 23/02/2010 |