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CPI preocupa

Motivo de discórdia desde que foi criada pelo ex-presidente da Câmara Arlindo Chinaglia, no dia 8 de dezembro de 2008, a CPI do Aborto ainda não existe na prática. A expectativa é de que o debate seja retomado ainda este mês, com a definição de todos os líderes de partido e presidentes das comissões, que deverão indicar os integrantes da CPI. Membro da ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) e coordenadora das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, a socióloga Dulce Xavier teme que a Câmara se transforme em uma espécie de “tribunal da Inquisição”, com a perseguição a mulheres que realizaram aborto no país.

“Se esta CPI for instalada, realmente teremos que lutar e exigir que ela se converta em uma oportunidade de debate sério e produtivo, em vez dos tristes espetáculos que os conservadores radicais patrocinam”, diz ela.

Na entrevista a seguir, a socióloga reflete sobre os riscos que envolvem a criação de uma comissão como esta e fala dos rumos tomados pelo movimento feminista desde que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, da Câmara dos Deputados, rejeitou o projeto de lei 1.135/91, que propunha a descriminalização do aborto no Brasil. A socióloga também analisa o recente episódio envolvendo a menina de 9 anos que praticou aborto após ter sido estuprada pelo padrasto e engravidado de gêmeos. Na visão de Dulce, o caso expôs o quão conservadores e desumanos podem ser os setores religiosos, geralmente considerados pela sociedade como “acima de qualquer suspeita”.

Como avalia a criação da CPI do aborto na Câmara dos Deputados? Quais as possíveis conseqüências de uma comissão como esta?

A criação da CPI foi uma iniciativa dos mesmos deputados que denunciaram as mulheres de Mato Grosso do Sul e são autores de projetos que propõem a proibição de métodos anticoncepcionais e a suspensão da norma técnica do Ministério da Saúde que permite o aborto legal. Isso indica as intenções dos autores da CPI de transformar o parlamento em um tribunal da inquisição e uma oportunidade de ampliar a criminalização das mulheres e de quem as apóia, como é o caso do Ministro da Saúde, José Gomes Temporão.

Este Legislativo é um dos mais conservadores da história e com esta CPI se presta a ser instrumento de perseguição das mulheres. As conseqüências poderão ser perseguição, exposição pública, acusações, entre outras ações autoritárias e injustas.

Precisamos sim de espaços de discussão e esclarecimentos sobre a garantia dos direitos das mulheres e a necessidade de ampliação das políticas de saúde sexual e reprodutiva. Mas também precisamos ter a garantia de que haja uma separação efetiva entre as religiões e o Estado ou as políticas públicas. Se esta CPI for instalada, realmente teremos que lutar e exigir que ela se converta em uma oportunidade de debate sério e produtivo, em vez dos tristes espetáculos que os conservadores radicais patrocinam, a exemplo das missas com a presença de réplicas de fetos, como ocorreu no Rio de Janeiro, em 2008.

Em julho do ano passado, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, da Câmara dos Deputados, rejeitou o projeto de lei 1.135/91, que permitiria o aborto no Brasil. Qual o próximo passo das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro e do movimento feminista, de maneira geral, a partir de agora?

Depois da votação do PL 1.135/91 continuamos atuando para fortalecer o apoio da sociedade aos direitos das mulheres. No segundo semestre de 2008, fizemos várias ações para denunciar a criminalização das mulheres por suspeita de praticarem aborto. O caso de mais de mil mulheres em Campo Grande (MS), que foram denunciadas por terem fichas em uma clínica de planejamento familiar e estão sendo ouvidas pela Justiça, foi um dos casos divulgados. É importante destacar que, assim como no Mato Grosso do Sul, os parlamentares ligados a grupos conservadores religiosos têm feito uma verdadeira perseguição às mulheres em vários outros estados.

Além disso, em setembro de 2008 fizemos ações conjuntas com diferentes movimentos sociais para dar visibilidade à criminalização das mulheres e para reivindicar a legalização do aborto como um direito e como uma questão de saúde pública. Também organizamos um seminário internacional para ouvir experiências das companheiras de outros países latinos. Da mesma forma, ampliamos a articulação dos movimentos sociais que se manifestam contra esta perseguição e criminalização das mulheres e pela legalização do aborto através da articulação de uma frente com alcance nacional.

No mais, continuamos acompanhando e denunciando a tramitação de projetos nos Legislativos (federal, estadual e municipal) que visam retroceder direitos já conquistados, relativos aos direitos sexuais e reprodutivos, em especial aos que se referem ao direito ao aborto seguro.

Os movimentos organizados têm atuado também junto ao Ministério Público e à Justiça para garantir direitos já conquistados. Foi o caso da Liga Brasileira de Lésbicas e de representantes das Católicas pelo Direito de Decidir, no Piauí, que entraram com uma ação no Ministério Público para exigir a instalação de um serviço de aborto legal naquele estado. Na mesma linha, organizações de São Paulo, entre elas a Comissão de Cidadania e Reprodução, entraram com uma ação de inconstitucionalidade contra uma lei municipal que proibia a distribuição de contraceptivos de emergência naquela cidade.

Enfim, continuamos a lutar e ampliar os apoios ao direito à autonomia como uma questão de democracia.

Em entrevista à BBC, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, disse em novembro de 2008 que a descriminalização do aborto é um fenômeno mundial, mas afirmou que não existe hipótese de o Brasil seguir esse caminho a curto prazo. Você concorda com esta afirmação? A que atribui o conservadorismo brasileiro?

Concordo com o ministro, a legalização do aborto é possível, mas este não deve ser um processo rápido. Temos muito a fazer para informar a população sobre a verdadeira situação de insegurança e perigo da saúde das mulheres devido à clandestinidade do aborto, para que possamos conquistar mais apoio da população. Isto, no entanto, pode demorar, pois os movimentos sociais não têm o mesmo acesso aos meios de comunicação que os grupos que adotam posição contrária.

Além de denunciar o grave problema de saúde pública, é importante ampliar o apoio da população à liberdade de escolha e mostrar o quanto é injusto criminalizar as mulheres em um país que não garante as condições para uma prática efetiva de planejamento da reprodução.

Tudo isso leva tempo numa população que tem pouca informação e sofre influência de setores religiosos conservadores que não respeitam os direitos das mulheres, não respeitam as leis e as políticas públicas, e ainda usam os meios de comunicação e suas paróquias para reforçar doutrinas que não condizem com a realidade e os comportamentos atuais.

Diferentes setores da sociedade e a maior parte da população, mesmo a católica, apóiam majoritariamente a legislação e as políticas públicas sobre direitos sexuais e reprodutivos (uso de camisinha, métodos anticoncepcionais, atendimento nos casos de aborto legal, isto é, gravidez resultante de estupro e risco de morte para a mãe) e parte considerável é contrária à criminalização das mulheres. Acreditamos que a informação é uma grande arma para conquistar direitos, porém esse não é um processo rápido, mas perfeitamente possível, especialmente com a colaboração dos meios de comunicação.

No início do mês, o caso do aborto da menina de 9 anos, após esta ter sido violentada sistematicamente pelo padrasto, gerou grande repercussão na mídia e forte oposição da Igreja Católica, apesar de estar dentro dos permissivos legais. Como avalia este episódio?

O arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, ilustrou muito bem o tipo de ação que estes grupos conservadores têm realizado contra as mulheres. Mesmo sendo uma criança – violentada desde os 6 anos e com uma gravidez de risco –, o caso não sensibiliza estes "senhores", daí pode-se imaginar como eles tratam as feministas!

Estes grupos radicais não têm um comportamento respeitoso para com as pessoas e grupos que lutam por liberdade e autonomia. Eles elaboram discursos ofensivos e fazem denúncias infundadas, a exemplo do que as Católicas pelo Direito de Decidir sofreram no dia 26 de janeiro, quando uma das integrantes da equipe teve que se dirigir à delegacia para prestar esclarecimentos sobre seu trabalho junto aos profissionais que prestam serviços de aborto legal.

Outros exemplos podem ser conferidos nos conteúdos dos Projetos de Lei que visam a proibir os direitos das mulheres de decidirem sobre o próprio corpo. Para se ter uma idéia, na Câmara dos Deputados há um projeto de lei que quer obrigar o registro compulsório de toda gravidez que acontecer no país, para que esta seja monitorada. É como se toda mulher fosse uma pessoa incapaz intelectual e eticamente e precisasse de um acompanhamento policial.

Além disso, a Igreja Católica ultrapassa a sua condição de religião, como qualquer outra, quando tenta se colocar acima do Estado, da lei e da sociedade e quando diz que a lei de Deus está acima da lei dos homens. O bispo e a Igreja podem ter suas opiniões e doutrinas e estas podem até ser válidas para as/os católicos/as, porém eles não podem obrigar a população brasileira a seguir suas crenças e normas, especialmente quando a maioria dos/as católicos/as não concorda com tais regras.

A excomunhão [dos médicos que realizaram o procedimento e da mãe da menina] revelou a urgência de discutirmos como sociedade, contando com o necessário apoio dos meios de comunicação, a garantia de um Estado que respeita todas as religiões, mas que não se deixa influenciar por nenhuma delas para prover políticas públicas para a sociedade. A questão da laicidade do Estado é uma exigência para garantir a democracia conquistada.

O ministro Temporão e o presidente Lula se manifestaram contra o posicionamento da Igreja, que, mais tarde, acabou desautorizando o arcebispo de Olinda em excomungar a mãe da menina, que autorizou o aborto da filha. A Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano, criticou inclusive a excomunhão dos médicos que o realizaram. Na luta pela descriminalização do aborto, qual a importância do posicionamento do governo e do recuo da Igreja?

O governo brasileiro, especialmente o Ministério da Saúde, vem indicando uma posição bastante clara de tratar o tema como uma questão de saúde pública, não de polícia. Do ponto de vista de saúde pública, o planejamento familiar é muito falho, não há educação nas escolas, o acesso a métodos contraceptivos é limitado e os meios de prevenção não alcançam toda a população. Os próprios grupos religiosos fundamentalistas contribuem para isso através da criação de leis municipais. Em Pirassununga, no estado de São Paulo, uma lei que está sendo questionada na Justiça proíbe a colocação de DIU (Dispositivo Intra-Uterino) e a distribuição de contraceptivos de emergência. Assim, do ponto de vista da saúde, o Estado não tem o direito de criminalizar a prática do aborto. Seria injusto criminalizar as mulheres, considerando que nem todas têm acesso à informação e a métodos anticoncepcionais.

Já o pronunciamento do presidente Lula neste episódio foi muito importante. A Igreja Católica tem que se colocar no seu lugar e não extrapolar o direito de se manifestar. Durante a visita do Papa Bento XVI, em 2007, o presidente falou que o Estado brasileiro era laico. Isso é educativo para a população, pois desde então o tema da laicidade passou a ser mais discutido.

Já no que diz respeito à ponderação do Vaticano, que fez uma reflexão sobre a atitude precipitada do arcebispo e destacou que os médicos salvaram a vida da menina, mostra que há posições diferentes dentro da Igreja. Nossa ONG busca justamente mostrar que há vozes dissonantes, que não existe uma fala única. Por mais que o Vaticano tente afirmar o contrário, isto não é real.

Acredita que a visibilidade que teve este caso pode contribuir de alguma forma para a ampliação do debate sobre o tema?

Sim, pois colocou em pauta um debate importante e mostrou o quanto os setores religiosos podem ser conservadores e até desumanos. Muitas vezes a denúncia feita pelas feministas é tratada com desconfiança pela sociedade, pois frequentemente as instituições religiosas estão acima de qualquer suspeita. O pronunciamento desse arcebispo deu a dimensão do que esses grupos fundamentalistas podem fazer em relação aos direitos das mulheres. Há um histórico de perseguição aos movimentos que tentam lutar por liberdade e autonomia, mas, em geral, as pessoas duvidam. Hoje em dia a perseguição não se dá mais por parte do Exército, mas de setores fundamentalistas, que fazem o papel de polícia, como ocorria no período da Ditadura em relação àqueles que lutavam por liberdade.

Sobre o caso, leia também o artigo "É necessário impor limites", da feminista Paula Viana 

Publicada em: 25/03/2009

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