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Brasil
Direito da antidiscriminação
Fruto de sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o livro “Direito da antidiscriminação”, do juiz Roger Raupp Rios (Tribunal Regional Federal - 4ª Região), aborda como o direito responde às diversas modalidades de discriminação. A obra descreve as formas como a discriminação ocorre – intencional, não intencional, de forma direta ou indireta – e mostra como o Direito, diante dessas manifestações, protege os indivíduos e os grupos por identidades, por práticas, por condições e assim por diante. “É uma espécie de teoria geral das respostas jurídicas diante das situações de discriminação”, diz Roger, que participou do seminário ”Sexualidade: Saúde, Direitos e Moralidades” em comemoração aos 5 anos de atividades do CLAM, e concedeu a seguinte entrevista: Que questões são tratadas no livro “Direito da antidiscriminação”? O livro se propõe a fazer uma reflexão sistematizada, geral, de como o direito, os tribunais, as leis e as pessoas que trabalham com direito raciocinam diante de casos de discriminação e como os resolvem em favor do princípio da igualdade e contra a discriminação. Então, ele se estrutura em quatro capítulos: o primeiro capítulo é mais conceitual e descreve as proteções que existem e como elas se dão; o segundo capítulo trata de discriminação direta ou discriminação intencional. Existem várias formas de discriminar intencionalmente, então, minha intenção foi identificar essas formas e mostrar como elas são respondidas juridicamente. No terceiro capítulo vemos que há muitas formas de discriminação que não são intencionais, onde as pessoas nem percebem que estão discriminando, mas estão. Nem toda discriminação é intencional então? Não! Veja, a sociedade se organiza de diversas formas que as pessoas nem percebem que estão organizadas. Ela se organiza, por exemplo, nos ambientes de trabalho privilegiando, nos casos de promoção, quem tem mais tempo de trabalho em detrimento daquele que é menos antigo. Muita gente vai dizer, honestamente, que não tem nenhuma intenção de discriminar com este critério, mas isso pode acarretar discriminação, por exemplo, em empresas onde só muito depois dos homens, as mulheres começaram a ter espaço. Então, esse critério, aparentemente neutro, não intencional, acaba provocando discriminação entre as mulheres. Este é um exemplo simples que mostra como a discriminação opera independentemente da intenção das pessoas. E como responder a isso? É o que trato no quarto capítulo, onde analiso as ações afirmativas como forma de responder às situações de prejuízo, de desvantagem que se perpetuam ao longo do tempo e sem medidas que tomem consciência dessa desvantagem e que a combatam. Essas medidas se chamam ações afirmativas. O objetivo deste capítulo é exatamente mostrar como essas situações podem se manter por muito tempo, quiçá indefinidamente, caso não se responda a elas. E esta é a conclusão de meu trabalho, isto é, mostrando a necessidade e a importância de se estudar e de se praticar direito da anti-discriminação de uma forma consciente e clara, por que às vezes quando falta essa organização e essa consciência clara, as situações acabam não sendo enfrentadas, uma vez que as pessoas não percebem que elas estão acontecendo e não sabem as respostas. Mas parece que as pessoas hoje em dia já estão procurando o Judiciário para dar as respostas àqueles que os discriminam por sua orientação sexual, não? Veja só, essas questões envolvendo direitos e discriminação por orientação sexual, discriminação em face da homofobia, do heterossexismo, é uma situação onde vários tipos de discriminação ocorrem. Aí o Judiciário no Brasil e em outros países foram criando respostas. Esse livro tenta pegar essas respostas e entendê-las de uma forma mais ampla, mais sistematizada. Atualmente também parece que as pessoas estão contando muito mais com o poder Judiciário do que com o Legislativo. Observando a história do Brasil recente, da metade dos anos 90 para cá, vemos que essas questões envolvendo diversidade sexual sempre começam no judiciário, por um motivo que parece simples de entender: no parlamento há muito mais resistência para se chegar ao tema, em função, sabemos, de motivos morais ou religiosos, e assim por diante. Então, naturalmente quando a demanda se coloca, especialmente pelo indivíduo, ela vai primeiro ao Judiciário. Aí no Judiciário começam a surgir casos que formam tendências de decisões, que se chama jurisprudência, e muitas vezes essa jurisprudência acaba fazendo com que parlamentares ou grupo de parlamentares passem a aprovar leis a partir do que os tribunais estão produzindo. Isto é o que tem acontecido. Quer dizer que o Judiciário tem estado à frente do legislativo? Eu diria, em primeiro lugar, que o judiciário está sendo demandado primeiro, porque é mais fácil para o cidadão chegar ao judiciário do que no parlamento através de um projeto de lei, que depende de um deputado, de um processo legislativo e assim por diante. O sr. diria que o Judiciário seria mais aberto que o legislativo nessas questões? Nesse sentindo o Judiciário é mais aberto por que seria mais fácil de acessar. Agora, as decisões que tem proferido, em geral, são decisões que tem protegido esses direitos, com mais rapidez do que os parlamentos têm feito. Até mesmo por que quando o Judiciário trata desses casos, este tem referências mais fortes na Constituição e na própria luta dos movimentos sociais do que o parlamento, que muitas vezes é mais político e menos técnico com relação à proteção que a Constituição provê para esses grupos. No ano passado, um rapaz foi chamado de “bicha” por um desconhecido em uma rua de São Paulo, e processou o sujeito que o agrediu verbalmente. O rapaz acabou ganhando a causa. O que isso simboliza? Eu acho que casos como esse revelam que certas coisas que eram toleradas e achadas normais há pouco tempo atrás já não são mais tão toleradas, nem as pessoas as vêem como normais. Isto faz com que elas reajam. Começando a reagir, elas têm conseguido vitórias na Justiça. Acho este um movimento positivo. Porém, penso também que não devemos desenvolver uma mentalidade chamada de politicamente correta. Ou seja, tudo tem que ser avaliado conforme o contexto onde essas palavras são pronunciadas, por que às vezes podem ser insultos ou ofensas, como nesse caso, mas outras vezes podem ser palavras que as próprias pessoas identificadas com esses grupos utilizam para se colocar de uma forma mais autônoma, mais corajosa na cena pública. O sr. acredita que, diante desses passos que o Judiciário tem dado, o legislativo vai acompanhar essa transformação na sociedade? A tendência que a gente vê na história do Direito, em várias áreas, é essa. É que quando um grupo ou grupos lutam por seus direitos que eram negados e começam a ganhar na Justiça isso acaba sendo incorporado, ao longo do tempo, pelos parlamentos. Às vezes é rápido, às vezes demorado. Com relação à união estável entre pessoas do mesmo sexo, muitos estão ganhando esse reconhecimento na Justiça, mesmo antes de existir uma lei sobre isso. A lei relativa ao casamento não existe, pois esta é uma lei que só o Congresso Nacional poderia fazer. Neste caso, o que o Direito poderia fazer? Legalmente, na lei brasileira atual, o casamento, stricto senso, do ponto de vista jurídico, só é permitido para pessoas de sexos opostos. Então, este é um caso de discriminação. As pessoas vão ter que buscar o reconhecimento de duas formas: ou mudam a lei ou vão na Justiça e ganham esse direito. Recentemente, a Suprema Corte da África do Sul decidiu que as pessoas homossexuais podem casar entre si independentemente de uma lei específica, por que a exclusão dessas pessoas da lei do casamento é discriminatória. Então, um tribunal poderá, como já fez em outros países – como na África do Sul – declarar discriminatório e criar essa possibilidade para pessoas do mesmo sexo. O Direito se produz pelos tribunais e pelos Parlamentos. Então, o Direito poderia reconhecer isso já com uma lei, ou, enquanto a lei não vem, as pessoas vão aos tribunais buscar esse direito. Publicada em: 12/08/2008 |