Na ocasião do 8 de março – Dia Internacional da Mulher, a cientista política Telia Negrão, secretária-executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, discute o panorama dos direitos da mulher no Brasil. Constata avanços, mas também muitos impasses, destacando o esforço do movimento feminista brasileiro para reagir às desigualdades de gênero. "Em todas as esferas da vida, as mulheres estão em situação de desigualdade frente aos homens. Então nossa postura tem sido defender as conquistas para impedir retrocessos”, avalia ela na entrevista a seguir.
Que desafios se impõem à mulher no tocante aos seus direitos sexuais e reprodutivos – principalmente em relação à descriminalização do aborto - face a mais um 8 de março? Que avanços foram alcançados nesta discussão no Brasil?
Este 8 de março vem marcado por uma disputa acirrada em torno de quem decide sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, na medida em que há um cenário internacional motivado por uma onda conservadora, na qual o Vaticano joga um papel estratégico. No Brasil, desde 2004, quando a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres apontou para a descriminalização do aborto, vivemos situações de avanços e impasses. Em setembro de 2005, o projeto para a revisão da legislação punitiva e restritiva ao aborto, elaborado a partir do Executivo, com a participação do Congresso e da sociedade, foi entregue à Câmara Federal, mas não foi analisado ou votado em 2006. Tratava-se de ano eleitoral, no qual o governo federal não quis intervir com um discurso comprometido com as mulheres. Em 2007, a visita do Papa ao Brasil deflagrou novo campo de disputas, no qual o Ministro José Gomes Temporão foi protagonista, defendendo que o aborto é uma questão de saúde pública. Como reação, setores fundamentalistas, representados no Congresso, se organizaram para levar ao debate e votação projetos de sua autoria mas também de setores progressistas, no intuito de retroceder direitos. A tática foi assumir a relatoria dos projetos e conseguir sua derrota. Entramos em 2008 com esta agenda em aberto, com mais de uma dúzia de projetos que ameaçam inclusive direitos já conquistados, como os dois permissivos legais, a anticoncepção de emergência, e outros que criam estímulos para que as mulheres não abortem.
Esses projetos têm como autores deputados ligados a setores religiosos. De que forma o movimento feminista pode enfrentar as tentativas de influência da Igreja nas decisões do Estado em relação a esta temática? Este ano, por exemplo, a Igreja Católica brasileira está lançando a Campanha da Fraternidade sob o tema "Escolhe, pois, a vida", um claro apelo em oposição à descriminalização do aborto no país.
O movimento de mulheres tem reagido a esta situação, num quadro de muita desigualdade, pois o governo federal, que deve ter a iniciativa de encaminhar ao Congresso o projeto de lei que descriminaliza o aborto, não tem posição única. O próprio presidente Lula, ora diz que apóia, ora joga água no moinho da igreja católica, porque é um católico. Nós defendemos o Estado laico, o que implica em liberdade religiosa, mas não a influência da religião nas decisões do Estado sobre as políticas públicas. Um exemplo da postura conservadora contra as mulheres foi a tentativa de impedir a distribuição da anticoncepção de emergência em Pernambuco, durante o Carnaval. A Igreja colocou pastorais e associações da sociedade como autoras de ações contra o acesso das mulheres e adolescentes a uma medicação que sequer é abortiva, pois age antes da nidação do óvulo, ou seja, antes da concepção. Foi necessário fazer uma mobilização nacional para assegurar a política pública. Então, a postura tem sido de defender as conquistas para impedir retrocessos, debater com a sociedade e buscar avanços neste campo.
As mulheres têm conquistado cada vez mais espaço no mercado de trabalho e nas esferas de poder, apesar de ainda receberem salários menores em relação aos homens e serem minoria nos cargos de poder. Em sua análise, o que precisa ser feito para se atingir a igualdade nesses campos e o que ainda mantém essa desigualdade?
Em todos os campos da vida, as mulheres estão em situação de desigualdade. São necessárias políticas efetivas de estado, que de fato mudem o cotidiano da vida das mulheres. Há um aumento de escolaridade que não se reflete na ocupação de postos no mercado de trabalho, onde as mulheres ainda ocupam os piores lugares. Quando são feitos os cortes raciais, a situação é ainda mais difícil, pois as mulheres ficam em último lugar quanto a rendimentos.Também as novas leis, como a Lei Maria da Penha, precisam ser implementadas, assegurando-se às mulheres a possibilidade de sair de situações de violência que negam seus direitos fundamentais à vida, à liberdade sexual, à saúde sexual e reprodutiva. Não é possível continuar com um número tão reduzido de delegacias para as mulheres, casas-abrigo isoladas, nem aceitar a recusa do judiciário de implementar os juizados especiais para a mulher. Neste sentido, estamos apoiando o Pacto pelo Fim da Violência Contra as Mulheres. Será necessário monitorar sua efetivação, pois muitos estados se recusam a assiná-lo e a assumi-lo. O mesmo em relação ao Plano Nacional para o Enfrentamento da Feminização da Epidemia da Aids e o Pacto Nacional para a Redução das Mortes Maternas e Neonatais, a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos e de Planejamento Familiar, anticoncepção de emergência, serviços de aborto legal.
O pano de fundo das mudanças é formado pelos padrões culturais conservadores, patriarcais, que somados a uma tradição racista e patrimonialista, vê o Estado a serviço de alguns poucos e não da população, através de políticas públicas e da distribuição de renda. É inaceitável o contingenciamento de verbas do orçamento destinadas às políticas para as mulheres, assim como as agendas mínimas que reduzem as prioridades a um ou dois pontos. O campo da saúde é um exemplo disso, é necessário reverter esta situação. Finalmente, a presença escassa das mulheres no poder demonstra ainda que há uma enorme caminhada que necessita deste protagonismo, daí porque defendemos também uma reforma política profunda, capaz de assegurar oportunidades iguais de participação política.