Privilegiando os direitos humanos sobre os interesses comerciais, o governo brasileiro decretou, pela primeira vez, o licenciamento compulsório de um medicamento. O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou na sexta-feira (04/05), em Brasília, um decreto que oficializa o licenciamento compulsório do anti-retroviral Efavirenz, medicamento utilizado por 70 mil pacientes de Aids atendidos pela rede pública de saúde brasileira.
Com essa decisão, o Brasil poderá produzir este medicamento como genérico e importá-lo por um preço mais baixo do que o do detentor da patente – no caso o laboratório Merck. Foi a primeira vez que o Brasil obrigou uma empresa a licenciar um medicamento anti-retroviral para poder fabricá-lo. No governo de Fernando Henrique Cardoso e mesmo no primeiro mandato do governo Lula, houve uma ameaça de fazer o licenciamento para alguns medicamentos. Com isso, o país conseguiu negociar e reduzir os preços de certas drogas.
“A decisão do governo é importante porque amplia o acesso do medicamento para as pessoas vivendo com Aids aqui no Brasil e permite que o país economize um recurso considerável, fabricando-o nacionalmente. Também é muito importante que um país de médio desenvolvimento, como o Brasil, se posicione desta forma, pois isto abre um precedente e cria jurisprudência para que, no futuro, outros licenciamentos compulsórios venham a ser emitidos, se necessário, o que significa que deixamos de nos sujeitar às exigências das indústrias farmacêuticas”, avalia Veriano Terto Junior, coordenador da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA).
A estimativa do governo é que a medida traga uma economia de US$ 30 milhões ao ano até 2012. Há algum tempo, pesquisadores e ativistas questionam se o Brasil já não teria auto-suficiência para a produção desses medicamentos. De fato, o país já produz vários anti-retrovirais que foram registrados antes da Lei Nacional de Patentes de 1996 – como o AZT, o DDI, D4tTe o Novir, entre outros. No entanto, por causa das restrições impostas pela Lei de Patentes, o Brasil não pode exportá-los, mas sim doá-los para países com os quais tem acordos de cooperação como a Bolívia, Paraguai, Honduras, Moçambique e Angola..
Segundo Veriano, esse é um dos maiores benefícios do licenciamento compulsório. “O Brasil eventualmente poderá incluir uma droga mais moderna na lista de doações de medicamentos que já produz e isto beneficiará vários outros países”, diz ele, nesta entrevista.
Qual a importância do licenciamento compulsório do medicamento Efavirenz para as pessoas que vivem com Aids no Brasil?
Ele é importante porque amplia o acesso do medicamento para as pessoas vivendo com Aids aqui no Brasil. Além disso, permite ao país economizar um recurso considerável e fabricá-lo nacionalmente, implicando em transferência e desenvolvimento tecnológico na produção deste e de outros medicamentos, uma vez que o Brasil será obrigado a melhorar sua capacidade de produção para atender a demanda interna. Hoje cerca de 70 mil brasileiros tomam o Efavirenz.
Quais serão os maiores impactos da decisão do governo brasileiro no campo internacional, tendo em vista os acordos de cooperação de doação de medicamentos?
O Brasil eventualmente poderá incluir uma droga mais moderna na lista de doações de medicamentos que já produz. Isto irá beneficiar outros países. Também é muito importante que países de médio desenvolvimento como o Brasil e a Tailândia – que também fez a licença compulsória do mesmo medicamento – se posicionem desta maneira, porque cria jurisprudência e precedentes para que, num futuro, outros licenciamentos compulsórios venham a ser emitidos, caso seja necessário. A medida do governo brasileiro também reforça os países em desenvolvimento para, em conjunto, resistirem à pressão e à retaliação de nações como Estados Unidos e os países europeus, que defendem os interesses das indústrias farmacêuticas neles localizadas. Teremos, assim, países em desenvolvimento não somente sendo consumidores de medicamentos, mas também produtores, além de ver reforçada a pesquisa e a capacidade tecnológica desses países no campo farmacêutico.
O termo “quebra de patentes” é amplamente divulgado pelos meios de comunicação. Qual a diferença em relação ao licenciamento compulsório?
É importante enfatizar que são duas coisas diferentes. A quebra de patentes é o que poderíamos chamar de pirataria: o país começa a produzir o medicamento, copia, não paga nenhum royalty ou qualquer tipo de indenização ao detentor da patente, desobedecendo a Lei de Propriedade Intelectual e os acordos de comércio internacionais. Já o licenciamento compulsório está dentro da legislação. Neste caso, o Brasil estará pagando royalties de 1,5% à Merck. Ou seja, o país de alguma maneira indeniza o produtor. O licenciamento compulsório utiliza uma flexibilidade legal tanto a nível nacional como internacional.
O problema é que as indústrias farmacêuticas consideram o licenciamento compulsório como uma quebra de patentes, como pura pirataria. Essa é uma estratégia para fazer a opinião publica acreditar que o país está sendo leviano e criminoso. Na verdade, o governo está apenas utilizando o que a lei e os acordos internacionais de comércio prevêem e permitem. É o que diz a Declaração de Doha, assinada pela maior parte dos países que compõem a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Os governos têm privilegiado as negociações comerciais em detrimento dos direitos humanos. Com essa medida, o governo parece estar indo na direção contrária aos interesses comerciais, não?
Sim, a decisão apregoa que os interesses comerciais não podem se sobrepor aos interesses da vida humana. O governo está honrando seu compromisso assumido com a declaração de Doha em 2001. Nesse caso, o Brasil não pode ser penalizado por ter recorrido a dispositivos legais.
Há um receio de que, comercialmente, o Brasil não tenha feito um bom negócio, e que poderia perder investimentos das indústrias farmacêuticas. O país corre esse risco?
Devemos primeiro perguntar: o que essas empresas investem no país é minimamente proporcional ao que elas recebem? De 1995 para cá não temos visto grandes descobertas de medicamentos para a Aids. É necessário questionar até que ponto o esquema atual de proteção intelectual contido no TRIPS (Trade Related Intelectual Property Statement) – conjunto de regulações sobre propriedade intelectual dos países membros da OMC – efetivamente estimula a pesquisa e a inovação de novas drogas. Além disso, não acredito que as indústrias vão deixar de investir no país porque o Brasil tem um mercado consumidor muito grande e respeita a propriedade intelectual mais do que a China, onde as indústrias farmacêuticas investem mais do que aqui, apesar de nem existir leis de patentes.