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Brasil
Aborto invisível em ano eleitoral
Inscrito no âmbito dos direitos reprodutivos, o aborto tem sido alvo de grande debate nas sociedades latino-americanas, colocando em confronto no espaço público posições de diferentes atores sociais. Apesar da forte ofensiva conservadora, percebe-se avanços e conquistas no sentido da descriminalização da prática em alguns países. Recentemente, a Corte Constitucional da Colômbia, país no qual a interrupção da gravidez era proibida sob qualquer circunstância, tornou legal sua realização em casos de má-formação fetal, de estupro ou de risco de vida para a mãe. No cenário nacional, a ampliação dos serviços de atenção ao aborto nos casos previstos por lei (estupro e risco de vida para a gestante) e, mais recentemente, a discussão sobre a da antecipação do parto em casos de fetos anencéfalos, têm alimentado o debate sobre o tema. Para a antropóloga Rozeli Porto, do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da Universidade Federal de Santa Catarina, um dos principais desafios a ser enfrentado é a necessidade de diminuir o fosso entre o arcabouço legal existente desde 1940 e a prática relativa à assistência dada às mulheres nos sistemas de saúde. “A interpretação da lei no Brasil afeta o fornecimento de serviços e muitas mulheres acabam maltratadas pelo desconhecimento, negligência ou mesmo devido ao preconceito dos profissionais da saúde. Embora a lei permita o aborto para salvar a vida da mulher e para preservar a sua saúde física ou mental, em casos de violência sexual (estupro), na prática, o aborto seguro e legal é de difícil acesso”, observa Rozeli, que coordenou, ao lado das pesquisadoras Greice Menezes (MUSA/ISC/Universidade Federal da Bahia) e Susana Rostagnol (Programa de Gênero, Corpo e Sexualidade do Instituto de Antropologia da Faculdade de Humanidades – Uruguay), o Seminário Temático “Aborto: conquistas e desafios”, durante o 7º Encontro Internacional Fazendo Gênero, realizado em Florianópolis entre os dias 28 e 30 de agosto. Nesta entrevista, ela fala dos avanços alcançados na luta pelo direito ao aborto legal e seguro no país, dos desafios que permanecem, e sobre o debate atual no campo político, no momento em que o país se encontra às vésperas das eleições presidenciais. Para Rozeli, a política econômica e a segurança pública são assuntos que tornam o tema do aborto invisível neste período pré-eleitoral. Como está o debate sobre o direito ao aborto no campo político? A sra. vê possibilidade de algum avanço em 2006, ano eleitoral? No campo político, temos observado que as mulheres estão se movimentando no que diz respeito às eleições de 2006. Porém, não me parece que o momento seja propício para retomar o tema. Conforme destaca Angela Freitas, do Instituto Patrícia Galvão, provavelmente será dada prioridade aos debates que envolvem a política econômica e a segurança pública dentre outros assuntos, tornando invisível a abordagem sobre os direitos reprodutivos, embora o tema do aborto seja colocado em pauta. Sugerimos, neste sentido, que seja amplamente divulgado o blog Mulheres de Olho nas Eleições lançado pelo Instituto Patrícia Galvão, que tende a privilegiar assuntos como violência, direitos reprodutivos e saúde integral das mulheres num diálogo entre imprensa, partidos políticos, candidatos e organizações que defendem os direitos sexuais e reprodutivos com vistas ao acompanhado das eleições. Quais foram, em sua opinião, os maiores avanços alcançados nos últimos anos na luta pela descriminalização do aborto no país? O aborto representa no Brasil um assunto interdito e sua descriminalização tem se deparado com movimentos religiosos e partidos fundamentalistas que condenam essa prática. Vale lembrar que o tema em nosso país surge em meio à ditadura militar e não poderia ser tratado de maneira direta numa sociedade repressora. Contudo, em decorrência de várias manifestações pela democracia na sociedade, podemos dizer que é o Movimento Feminista que se destaca por diversas conquistas nos últimos anos, estando entre elas sua participação direta na formulação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, na década de 80, pelo Ministério da Saúde, na luta pela descriminalização e legalização do aborto, e todo o processo para incluir os direitos das mulheres na Constituição de 1988. Importante também citar as duas normas técnicas para profissionais de saúde (de prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual, sendo aprimorada com a não exigência do Boletim de Ocorrência nos casos de gravidez proveniente de estupro em 2005 e a norma de atenção humanizada ao abortamento, editada pelo Ministério da Saúde, em 2005), dentre outros avanços. A expansão dos serviços de atendimento aos casos de aborto previstos por lei existem em unidades públicas de saúde, ainda que não sejam uma realidade em todos os grandes municípios brasileiros. Tais reivindicações se traduzem numa longa trajetória que continua a fazer parte da discussão entre vários setores dessa sociedade, o que abrange posições contrárias e favoráveis, a partir de perspectivas religiosas, políticas, médicas, jurídicas, morais e/ou éticas. Alguns avanços ocorreram em torno do tema no sentido de que, cada vez mais, um número maior de juízes estejam sensíveis às demandas das mulheres, concedendo-lhes autorizações para a interrupção voluntária da gravidez, sobretudo nos casos de inviabilidade fetal. Em 2004, por exemplo, foi concedida liminar pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, que autorizava a interrupção da gravidez de feto anencefálico. Mesmo tendo sido cassada, essa liminar encontra-se no Supremo, não havendo ainda uma deliberação final sobre o tema. Em 2005, foi formada a Comissão tripartite para revisão da legislação punitiva do aborto instalada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, recomendação da 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que mesmo sob protestos dos setores mais conservadores da sociedade – como a CNBB – encaminhou ao Congresso um projeto de descriminalização e legalização do aborto no país, aguardando votação. Em termos mais gerais, é notável que a sociedade brasileira tem discutido mais esta questão – algumas pesquisas de opinião demonstram que a maioria da população não só discorda que haja retrocessos na atual lei que permite o aborto em casos de risco de vida da mãe e de gestações resultantes de estupro, como também concorda com a possibilidade da mulher escolher antecipar o parto quando se confirma o diagnóstico de uma anomalia como a anencefalia, por exemplo. Resumidamente, estes representariam alguns dos avanços ocorridos em nossa sociedade no que diz respeito ao aborto nos últimos 30 anos, os quais não se desenvolveram automática ou instantaneamente, mas pela luta sempre ativa dos Movimentos Feministas. A sra. acredita que o consentimento, por parte de algumas instâncias jurídicas regionais, para a antecipação do parto em casos de fetos anencéfalos, pode contribuir para uma maior flexibilização na legislação restritiva do aborto no país? De que forma isto tem contribuído para o debate? A liminar que autorizava a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos, expedida pelo Ministro Marco Aurélio de Melo em julho de 2004, certamente demonstrou ser um movimento positivo no sentido de propiciar tais autorizações legais, especialmente nestes casos. Interessante observar que, embora no Brasil o tema aborto seja de difícil compreensão, nos casos específicos de anencefalia – e também de outras anomalias fetais incuráveis, tais como a agenesia renal bilateral (ausência de rins) – tanto a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Nacional de Diretos da Pessoa Humana, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS) se manifestaram favoráveis à interrupção da gravidez. Observa-se que muitos setores médicos ligados com a detecção de anomalias fetais graves adotaram estratégias para obter alvarás judiciais de autorização para esse tipo específico de aborto, obtendo assim jurisprudência favorável para a interrupção da gravidez. Em pesquisa realizada no ano de 2005 em um hospital público de Santa Catarina, pude confirmar esse aspecto. A grande maioria dos profissionais da saúde (considerando-se médicos/as, enfermeiros/as, assistentes sociais) não vêem necessidade de autorizações judiciais para esses casos. Além de estarem de acordo sobre a não necessidade de autorização judicial nos casos de anencefalia, todos concordam que outras alterações incompatíveis com a vida não deveriam, do mesmo modo, necessitar de autorização. Observam que seria interessante a modificação do Código Penal Brasileiro incluindo em seus artigos um permissivo legal sobre a interrupção da gravidez por anomalias fetais graves. Ao se posicionar contra a necessidade de autorizações judiciais, transparece o intuito de beneficiar as mulheres para que elas não passem por novos constrangimentos institucionais ou não sofram com uma gravidez que, conforme destacam, não vingará. Assim sendo, todas as movimentações realizadas no que dizem respeito ao aborto contribuem para o debate, que deve ser intensificado a cada dia, devendo ser respeitados a dignidade humana e os direitos fundamentais de todas as mulheres. O que está em jogo neste debate é que a criminalização do aborto termina por penalizar apenas uma parcela das mulheres, no caso brasileiro, a maior parte da população, reiterando as desigualdades sociais. Em se tratando das mulheres que optariam por uma antecipação do parto diante do diagnóstico de uma anomalia fetal incompatível com a vida, isto implica prosseguir com a gravidez, em condições de muito sofrimento e risco para sua saúde No caso de um aborto por razões pessoais, são as mulheres que não podem pagar procedimentos seguros que irão empreender longos percursos clandestinos, que podem inclusive levá-las à morte. Quais os maiores desafios a serem enfrentados? Embora haja um esforço de se fazer cumprir os compromissos de respeito aos direitos reprodutivos, assumidos pelo Brasil no plano internacional como signatário do texto final das Conferência de População e Desenvolvimento, no Cairo, e da Conferência Internacional da Mulher, em Pequim, organizadas pelas Nações Unidas, ainda são muitos os desafios. Acredito que um dos principais seja a necessidade de diminuir o fosso entre o arcabouço legal existente desde 1940, na legislação sobre o aborto no Código Penal – e a prática – relativa a assistência dada às mulheres nos sistemas de saúde. A interpretação da lei no Brasil afeta o fornecimento de serviços e muitas mulheres acabam por ser maltratadas pelo desconhecimento, negligência ou mesmo devido ao preconceito dos profissionais da saúde. Embora a lei permita o aborto para salvar a vida da mulher e para preservar a sua saúde física ou mental em casos de violência sexual (estupro), na prática, o aborto seguro e legal é de difícil acesso. No que diz respeito aos profissionais da saúde, assim como diz Gilberta Soares (secretária-executiva das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro), acredito que o tema do abortamento faça parte do repertório de assuntos relacionados à vivência reprodutiva e esteja incluído na formação acadêmica desses profissionais. Mas esta abordagem é influenciada por questões morais/religiosas que acarretam dificuldades para a compreensão do assunto. A assistência é orientada pela compreensão de que “o abortamento é um crime”, sem alusão aos direitos reprodutivos ou às questões sociais que decorrem da problemática da clandestinidade. Dessa forma, a questão da qualidade dos cuidados e do acesso aos cuidados disponíveis ameaça a implementação correta das leis do aborto, além de não ser facilitada sua liberalização. No Brasil, os cuidados pós-aborto inseguros continuam a ser gravemente limitados pelas deficiências do sistema de saúde e a falta de acesso. No país em que o aborto é ilegal – salvo algumas situações – o receio de um processo criminal ou questões morais e religiosas podem afetar a disponibilidade dos profissionais de saúde para tratar mulheres com complicações provocadas por um aborto ilegal, ou mesmo aqueles permitidos no Código Penal. Do mesmo modo, as mulheres que se submeteram a um aborto inseguro possivelmente vão postergar a procura de cuidados por medo de um processo criminal, colocando, assim, suas vidas em risco. Temos que pensar em efetivar políticas públicas articuladas que garantam às mulheres e seus parceiros o exercício dos seus direitos reprodutivos. Isto implica educação sexual nas escolas, informação qualificada sobre métodos contraceptivos e o acesso a estes insumos, inclusive a contracepção de emergência até o acesso ao aborto de forma legal e segura. Publicada em: 26/09/2006 |