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Gênero e políticas de saúde
Romper com a idéia de “gênero igual à mulher”, dar visibilidade para a dimensão da sexualidade enquanto uma questão de saúde e poder transversalizar o gênero como um tema importante para a saúde coletiva são os objetivos do Grupo de Trabalho Gênero e Saúde, coordenado, nos últimos dois anos, pela médica Wilza Vieira Villela (Instituto de Saúde/SES-SP). “Pensar tratamento de câncer na perspectiva de gênero não é igual a fazer ação de prevenção de câncer de colo de útero. É importante fazer esse trabalho de prevenção de colo de útero, mas o câncer de pulmão, por exemplo, é completamente diferente entre homens e mulheres. Homens e mulheres se relacionam diferentemente com doenças crônicas que exigem cuidado, como é o caso do câncer. Este é o olhar de gênero na saúde”, afirma ela nesta entrevista. Criado há onze anos pelas pesquisadoras Estela Aquino (ISC/UFBa), Maria Luiza Heilborn (IMS/UERJ), Ana Maria Costa (UnB/Ministério da Saúde) e Regina Barbosa (NEPO/Unicamp), o GT Gênero e Saúde tem por finalidade pautar a temática de gênero nos eventos da ABRASCO e também na sua linha editorial. Além de uma grande oficina, o GT será responsável por cinco painéis e uma palestra dentro da programação do 11º Congresso Mundial de Saúde Pública e do 8º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, eventos que acontecerão entre os dias 21 e 25 de agosto, no Rio de Janeiro, organizados pela Federação Mundial de Saúde Pública e pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Pública (ABRASCO), sua afiliada no Brasil. O GT também promoverá o lançamento, durante o Congresso, da primeira edição em português da cultuada revista científica inglesa Reproductive health matters. Formada em Medicina pela Escola de Medicina e Cirurgia, atual Uni Rio, Wilza Villela fez mestrado no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) e doutorado da Universidade de São Paulo (USP). Foi, entre os anos de 1998 e 2002, uma das diretoras do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (SES/SP). Atualmente, faz pós-doutorado na Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Nesta entrevista, ela fala da importância dos estudos de gênero para a área da saúde coletiva, das atividades que o GT vai desenvolver dentro do Congresso e dos possíveis resultados e desdobramentos no contexto internacional. “O gênero é um dos determinantes sociais da existência humana, de tal maneira que se torna um dos determinantes do processo de saúde/doença”, observa a pesquisadora. Qual a importância dos estudos de gênero para a área da saúde coletiva? Todos os seres humanos são generificados – homem/mulher. Para além do biológico e demais diferenças, essa é uma distinção fundante e que determina a circulação social, os espaços que as pessoa ocupam e a maneira como elas vivem. Se acreditamos que o processo de saúde/doença é determinado sócio-culturalmente, a doença poderia ser entendida como uma tradução, no âmbito do corpo biológico individual, das vicissitudes e da trajetória do viver, e esse é um processo sócio-cultural. Isto vai marcar o corpo de formas diferentes e algumas dessas marcas são lidas como doenças. Como os corpos masculinos e femininos circulam de maneiras distintas no mundo, todo o processo da vida, do adoecimento e da morte é marcado pelo fato de se ser homem ou mulher. Isto faz com que homens adoeçam de uma determinada maneira e mulheres de outra. Esta é a importância dos estudos de gênero para a área da saúde. O gênero é um dos determinantes sociais da existência humana, de tal maneira que se torna um dos determinantes do processo de saúde/doença. Vale lembrar que gênero não é só mulher, gênero são mulheres e homens. Mas, ao falar em estudos de gênero, parece haver ainda uma tendência de se associar o termo à mulher. Eu diria que o campo esteve marcado por essa idéia em sua origem. Historicamente o campo de estudos de gênero se inicia com um objetivo de marcar a especificidade das mulheres, devido a uma condição de subordinação e de dominação sofrida pelas mulheres que configura um conjunto de necessidades próprias. Não se pode analisar a saúde das mulheres sem olhar para um contexto de dominação e opressão que determinaria essas necessidades. Então, os estudos de gênero começam atrelados a essa discussão política do movimento feminista. Entretanto, no desenvolvimento desses estudos reconheceu-se que, ao lado da dinâmica de opressão das mulheres existia também um processo social de opressão sobre os homens. A forma como os homens são oprimidos pela cultura de gênero é bastante diferente como isso opera em relação às mulheres. Então, neste segundo momento dos estudos de gênero, começa-se a discutir os estudos de masculinidades e como as construções sociais sobre o ser homem também acarretam riscos para os homens e agravos à saúde. Foi importante perceber que existe um sistema de opressão diferente, que penaliza de forma distinta, mas que opera também sobre os homens. Uma terceira inflexão importante foi olhar especificamente a sexualidade como um campo distinto. Nos primórdios dos estudos de gênero, assim como falar de gênero significava falar de mulher, sexualidade era equivalente a heterossexualidade e reprodução. Então, passou-se a olhar a sexualidade como uma maneira de circular na sociedade e de se relacionar com o próprio corpo e com o outro. Essa também foi uma reflexão essencial para os estudos de gênero. É importante para o campo da saúde poder incorporar a sexualidade como uma dimensão da saúde humana. A sexualidade não é uma dimensão da reprodução, e sim da vida, e tem a ver com a auto-estima, que por sua vez está relacionada à depressão mental, cardiopatias, diabetes e uma série de agravos clínicos. Passar a enxergar a sexualidade como uma dimensão que articula a vida física, emocional e psíquica foi um avanço estrondoso. Por outro lado, gênero e sexualidade são campos próximos, mas são duas coisas diferentes. Um determina o outro, mas são duas coisas distintas. Que atividades o GT gênero e saúde pretende desenvolver dentro do Congresso? Como fizemos nos dois últimos anos, há uma grande oficina e um conjunto de painéis e uma palestra que vão problematizar e tentar aprofundar alguns dos diferentes pontos que serão tratados na oficina. A finalidade da oficina é identificar avanços e lacunas na incorporação do gênero no âmbito da saúde coletiva e da saúde pública. Entendemos que, sendo a ABRASCO um órgão legítimo dentro do campo da saúde e o GT uma instância da instituição que trata da questão de gênero, é importante fazer esse diagnóstico até mesmo para orientar as próximas atividades do GT dentro da ABRASCO. É importante desenvolver, a partir das pesquisas realizadas, determinados consensos políticos ideológicos, que vão, num segundo momento, se traduzir em ações de gestão e práticas de serviços no campo da saúde pública. E que balanço pode ser feito a partir deste diagnóstico? Que avanços e lacunas foram identificados até agora? O resultado das duas oficinas anteriores apontaram que, se de um lado, temos tido muitos avanços, por outro lado, existem ainda coisas em que temos que avançar mais, como por exemplo, a idéia de gênero como equivalente de mulher. Existe ainda um volume muito grande de pesquisas e ações que endossam essa idéia. A própria política de gêneros, o que quer dizer? Programa de Saúde da Mulher. Ou então “saiu uma pesquisa com recorte de gênero”. Qual o recorte de gênero? No campo do planejamento e políticas de saúde, na hora que se vai operacionalizar o gênero, ele vira programa de saúde da mulher. Então, teríamos que ter um avanço no sentido de buscar uma operacionalização para a idéia de gênero no campo da saúde coletiva e da saúde pública que rompesse com a história que gênero significa mulher oprimida. Essa foi uma de nossas primeiras avaliações. Temos que tentar adensar a construção teórica de gênero na saúde que não ficasse entendida com saúde da mulher e, por outro lado, avançar proposições de políticas e de planejamento. Do que trata a oficina neste Congresso? Quais as suas expectativas em relação aos resultados que o GT pode trazer para o Congresso, que reúne especialistas na área da saúde de todo o mundo? Como este é um congresso internacional, a proposta da oficina é tratar de reforma no setor da saúde, que é algo que está acontecendo na América Latina como um todo, e analisar como se pode pensar políticas com perspectiva de gênero no contexto de reforma. Então, esta oficina tem um certo caráter estratégico, porque a maioria dos países da América Latina e do Caribe estão num momento de reforma do setor da saúde. A maioria tem montado, por conta das metas do milênio, programas de redução da morte materna. É claro que se pode fazer um programa de reforma no setor que tenha um componente forte de redução da morte materna e, a partir disso, fazer uma política sólida de gênero. Pode-se, infelizmente, também fazer o contrário: realizar um programa extremamente reacionário e voltar para programas materno-infantis dos mais retrógrados. Então este é um momento estratégico para pensar que, se conseguirmos fazer com que países que estão construindo sua reforma no setor, possam construir essa reforma com uma perspectiva de gênero mais avançada, este será um grande ganho político. Por isso estamos realizando esta oficina internacional, com pessoas da Organização Pan-Americana de Saúde, do Fundo de Populações das Nações Unidas e da Associação Latino-Americana de Medicina Social (ALAMIS). A idéia é reunir atores internacionais importantes na construção dessas reformas em seus respectivos países e formular um documento como produto desta oficina, a ser publicado. Esperamos assim ter um avanço nesta formulação. E quanto aos painéis e à palestra? Como disse, a idéia dos painéis e da palestra é desdobrar e aprofundar a discussão proposta pela oficina. Destaco o painel “Mulheres tomadoras de decisão: empoderamento da mulher como condição para o desenvolvimento”, do qual vão participar duas ministras da saúde de países latino-americanos – a ministra Nila Heredia, da Bolívia, e Maria Soledad Barria, do Chile – a ministra do Meio Ambiente do Brasil, Marina Silva, e a presidente da OPAS, Mirta Roses Periago. Montar este painel foi uma vitória para nós, com a perspectiva de discutir em que medida é possível, no processo de negociação política, o que significa ser feminista e ter poder. Temos ainda dois outros painéis que olham para a construção da parceria da sociedade civil e do Estado na garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, com recortes diferentes, e dois outros que olham especificamente a questão da sexualidade. Um deles trata dos limites dos estudos populacionais sobre sexualidade e, por outro lado, sua capacidade de pautar políticas públicas. A proposta do outro painel que enfoca a sexualidade – “Desestabilizações da categoria gênero e suas repercussões na Saúde” – é considerar a diversidade sexual sob um outro olhar. Há dez anos, falar em desestabilização de gênero era uma discussão impensável. Uma coisa é colocar, por exemplo, um trabalho sobre travestis numa mesa sobre populações vulneráveis à Aids, e outra é tratar da temática numa mesa sobre novas questões para saúde. Ao associar os travestis às populações vulneráveis à Aids, os colocamos como um grupo de risco, mais vulneráveis ou mais transmissores. Entretanto, quando integram uma discussão sobre novas questões para a saúde, estamos abordando tal população com outro olhar. Um outro exemplo: o Hospital das Clínicas de São Paulo tem um serviço montado para fazer adequação sexual. Apesar deste serviço ser caro e sofisticado, eu não tenho nenhuma razão de achar que uma mulher, que nasce com um pênis, tenha menos direitos a adequar o seu corpo à sua subjetividade do que uma criança que nasce com leucemia e precisa fazer um transplante de medula. Como avaliar? Por que alguém tem mais direito? Por que a morte física é mais grave que a morte mental e da subjetividade do sujeito? Na verdade, o Estado tem que buscar resolver os dois problemas. Porque ainda não temos capacidade de ampliar tratamento para o câncer ou reduzir a morte materna, isto não é razão para não se fazer cirurgia de adequação corporal. No início do hiv, muitos questionavam como poderíamos dar os anti-retrovirais, que são tão caros, para uma meia dúzia de pessoas que resolveu “dar pra todo mundo”. Como a epidemia da Aids se tornou um sério problema de saúde pública, o Estado hoje em dia garante o direito ao acesso aos medicamentos à população soropositiva de forma universal. O GT também estará lançando no Congresso a edição em português da revista inglesa Reproductive health matters. A Reproductive helath matters é uma revista do campo da saúde coletiva que olha as questões da saúde reprodutiva e da sexualidade com todo o rigor acadêmico, mas é feita numa perspectiva feminista. Eles têm procurado, em alguns países, parceiros para que a revista fosse publicada em outros idiomas. Ela já é publicada em espanhol, hindi, chinês e agora vai ser lançada a primeira edição em português. A idéia é continuarmos a ser as editoras desta revista.
COORDENADOR(ES): O Grupo Temático Gênero e Saúde convida Dia 21/08 - Publicada em: 20/08/2006 |