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O envelhecimento tem passado por um processo de ressignificação no Brasil, ganhando novos sentidos ao longo das últimas décadas. Dentre os operadores dessa mudança, a gerontologia e a sexologia vêm buscando apresentar a experiência sexual como elemento central para um envelhecimento bem sucedido, colidindo com concepções estereotipadas e negativas a respeito do avanço da idade. O processo, no entanto, não tem se dado de maneira linear e homogênea: pesquisando sobre as imbricações entre envelhecimento e sexualidade em sua trajetória acadêmica, o antropólogo e pesquisador Mauro Brigeiro (Unicamp) tem observado que as reflexões e proposições científicas sobre a temática não estão desapegadas de representações tradicionais. O saber sobre envelhecimento tem se construído de modo que o novo não surge como ruptura radical, embora certas configurações de gênero sejam modificadas nesses discursos.

Para além da esfera científica, a articulação entre envelhecimento e sexualidade tem adquirido contornos menos formais, no fluxo do cotidiano. Para Mauro Brigeiro, é importante refletir como os discursos de ordem acadêmica são apropriados pelos idosos. Estariam os idosos assimilando integralmente a lógica desse novo envelhecimento? Que tipos de representações podem ser identificadas na interface entre ciência e indivíduos? Até que ponto tal interface está perpassada por pressupostos de gênero?

As novas problemáticas trazidas pelas construções sociais do envelhecimento, segundo Mauro Brigeiro, expressam um caráter multidisciplinar, sendo divulgadas também por espaços como a mídia. Em entrevista ao CLAM, o pesquisador analisa esse processo, chamando a atenção para o fato de que os efeitos desses arranjos discursivos ainda estão por ser mais bem estudados e compreendidos.

Em que medida a afirmação da sexualidade como uma dimensão positiva do envelhecimento significa uma tentativa de reformulação de concepções negativas sobre o avanço da idade?

Conforme temos verificado na literatura especializada nas últimas décadas, há um notável esforço empreendido por gerontólogos, sexólogos e outros profissionais por ressignificar o que vem a ser a sexualidade na velhice. Em tempos de crença generalizada na sexualidade como elemento imprescindível do bem-estar e da saúde, assim como da defesa da ideia do prazer sexual no marco dos direitos, tal qual assistimos atualmente, o sexo vem sendo arrolado com frequência no discurso sobre o envelhecimento bem sucedido.

De acordo como os entusiastas da sexualidade na velhice, a prática sexual parece ser tanto um reflexo da boa velhice, como um “recurso” para envelhecer melhor, tornando-se curiosamente um ideal. No entanto, os efeitos dessa produção discursiva podem ser bastante variáveis e ainda estão por ser mais bem estudados e compreendidos. Se nos ativermos à mídia, por exemplo, encontramos aí uma forte aliada para a repercussão dessa perspectiva sobre a sexualidade na velhice. Vejamos no caso dos próprios velhos: no artigo que publicamos recentemente na RBCS, com a professora Guita Debert, buscamos precisamente refletir se, e como, o ideário dos especialistas encontrava eco entre grupos e redes de sociabilidade de idosos. Para isso, fizemos uma revisão de uma série de etnografias realizadas no contexto brasileiro nos últimos anos. O que encontramos foi que os velhos e as velhas estudados parecem menos afeitos às prescrições e tecnologias dos especialistas no que tange ao sexo. A velhice e a sexualidade são dramatizadas segundo preocupações e lógicas de gênero que não correspondem propriamente àquelas apontadas na produção bibliográfica especializada.

Passando a outra esfera, há ainda muito o que estudar sobre os efeitos desse ideário sobre os próprios profissionais que atuam em serviços clínicos ou de assistência social dirigidos à população idosa, ou seja, até que ponto suas práticas de atenção expressam os elementos que definem tal ideário.

Não é simples precisar em que medida o discurso de afirmação da sexualidade na velhice gera mudanças nas representações negativas sobre o avanço da idade. Correndo o risco implicado em toda simplificação, eu diria que a proposta de uma revalorização do envelhecimento que inclui a atividade sexual como um de seus suportes, efetivamente, reconfigura, ou ao menos busca desestabilizar, certo sistema de valores e de imagens, afirmando que a conjugação de “velhice” e “sexo” seja plausível. Por outro lado, essa mesma lógica corrobora que para a dissociação entre esses significados seja percebida como inadequada, negativa, indesejada.

É possível falar em uma sexualidade transgressora para aqueles que estão envelhecendo? O envelhecimento permanece atrelado a concepções de gênero?

Posso afirmar apenas que o ponto de vista assumido por muitos gerontólogos e sexólogos sobre o tema pressupõe, sim, a necessidade de uma reformulação de noções acerca do sexo e de determinadas configurações de gênero. É muito interessante notar que para esses especialistas a velhice instaura uma nova etapa do curso da vida sexual, instaura uma nova sexualidade, mais intensa e até melhor, e que para ser bem vivida exigiria um exercício de ressignificação por parte dos sujeitos. O que me parece mais interessante nesse assunto é analisar quais os elementos da imbricação sexo e gênero são destacados no discurso dos especialistas e que espécie de gestão da velhice, dos corpos e dos prazeres está sendo apresentada.

Obviamente, há normas e demarcações de gênero que são postas em questão nessa literatura especializada. Mas há de se colocar a atenção nos problemas evocados pelos especialistas, os argumentos que empregam para questioná-los e nas tecnologias de intervenção e ordenamento formuladas para manter determinado exercício sexual na velhice. Seguramente, a produção etnográfica sobre velhice e gênero ajuda bastante a pensar que tanto a proposta dos especialistas pode ser pensada como “transgressora”.

Há espaço, no discurso da gerontologia, para identidades, práticas e subjetividades não convencionais? Até que ponto a modelização do envelhecimento, pode ser encarada como emancipatória?

Na bibliografia que temos analisado, seja ela internacional ou nacional, a sexualidade na velhice exaltada é a que corresponde à gramática heterossexual. E mesmo ao interior desse marco, ela é bem específica, circunscrevendo-se geralmente a interações de tipo conjugal.

A sexualidade dos velhos apresentadas em relatórios, decodificada em tabelas, delimitada nas descrições sobre a fisiologia dos corpos e nas abstrações sobre o aparato psíquico, está absolutamente subordinada à normatividade heterossexual. E desta modalidade, não são mencionadas expressões eróticas e sexuais muito variadas. De certa forma, esse aspecto reforça a tendência apontada por muitos autores de que a sexualidade dita “normal”, heterossexual e vivida pelo par conjugal, é a que vem progressivamente recebendo atenção pelos especialistas, sendo cooptada de forma privilegiada para o escopo de sua intervenção.

Sobre a segunda parte da pergunta, ainda que eu tenda a reconhecer o importante papel dos saberes sexológicos, e de alguns de seus representantes, em destacados processos históricos de política e de emancipação sexual, tenho restrições em interpretar a proposta de erotização da velhice empreendida conjuntamente por gerontólogos e sexólogos como algo emancipatório. Sem ignorar que a legitimação social de uma velhice sexualizada abre novas possibilidades para os sujeitos concretos, não estou ainda seguro se as transformações operadas por esse processo, os efeitos por ele gerados, primam mais por seu caráter libertário ou por colonizar e enclausurar outras racionalidades e formas de experimentação dos corpos.

Nas suas reflexões, você tem observado uma abordagem mais matizada e plural e menos determinista das articulações entre envelhecer e sexualidade. O que significa essa característica do discurso da gerontologia?

O caráter multidisciplinar da gerontologia está associado a uma abordagem da sexualidade de tipo holista, não reduzida a aspectos biológicos. Tal conformação multidisciplinar e essa perspectiva holista da sexualidade nos levaram a pensar sobre a confluência da gerontologia com o saber sexológico.

Temos observado que o surgimento de novas problemáticas no discurso especializado deriva também das aproximações e nexos entre diferentes campos de conhecimento e das convenções que vão legitimando socialmente. A caracterização proposta pela equipe coordenada pela professora Jane Russo, em seu estudo sobre a conformação do campo sexológico no Brasil, é um importante eixo de reflexão. A partir desse referencial, tal campo pode ser considerado como organizado em duas frentes, a educação sexual e a sexologia clínica. Ao interior desta última, estariam a medicina sexual e a sexologia clínica. O estudo aponta aí a existência de certa tensão, sendo a medicina sexual mais restrita a concepção biomédica e a sexologia clínica orientada por uma perspectiva mais holista da sexualidade.

O que notamos é que a medicina sexual é o ramo da sexologia com que a gerontologia estabelece menor diálogo. Para nós, esta é uma observação interessante, pois nos ajuda a identificar quais as divergências estariam implicadas na formulação desses novos conhecimentos; além de reforçar o argumento de que as visões controversas sobre um tema científico ou tecnológico são indissociáveis às subdivisões dos campos disciplinários ou às alianças entre certos profissionais, ou às junções entre certos conceitos e teorias.

Diante dos avanços tecnológicos, a reprodução tem sido uma possibilidade real para pessoas idosas. De que maneira essa nova realidade está imbricada com o envelhecer? E com os padrões de gênero?

No que se refere à literatura gerontológica, ou se estendermos mais, à bibliografia de diferentes áreas do conhecimento dedicadas à sexualidade na velhice, o tema da reprodução em face às novas tecnologias reprodutivas está ausente. Desviando um pouco a sua pergunta, o que sim parece ter se incrementado paralelamente à consolidação desse processo que chamamos de erotização da velhice – e que provavelmente pode ser incluído como mais um de seus elementos agenciadores – é a problematização da Aids entre idosos.

É interessante acompanhar o que passa a ser considerado viável de ser pensado ou inteligível a partir dessa erotização da velhice. A associação entre “velhice”, “sexo” e “Aids” não é plausível somente porque há mais casos clínicos nas unidades de saúde que são quantificados e concretizados em relatórios epidemiológicos; essa associação é decorrente da consolidação mesma da ideia que os velhos fazem sexo. É curioso também observar nesses novos discursos como se interpreta a vulnerabilidade específica dos velhos à Aids: por um lado, diz-se que os velhos agora fazem mais sexo, em parte apoiado por toda a tecnologia biomédica criada nos últimos anos; por outro, devido a particularidades geracionais, a população mais velha seria menos propensa ao uso do preservativo.

Outros fatores são mencionados, como a fragilidade orgânica, fisiológica, do corpo velho que os tornaria mais expostos a qualquer tipo de infecção; mas o que mais me chama a atenção é a re-atualização de alguns discursos como o da prevenção da Aids e o do uso dos remédios como o Viagra, inclusive da ideia de que o uso do preservativo é um hábito difícil de disseminar, enquanto que o uso das drogas pró-sex não requer maior esforço e é descontrolado.

É interessante mencionar também o que insistentemente continua ausente, a despeito de todo esse burburinho sobre a sexualidade do velhos. Fala-se muito em atividade sexual ao longo da vida, fala-se muito das frequências e das intensidades da prática e dos prazeres sexuais na velhice, fala-se em derrubar concepções de gênero que limitariam a experimentação do prazer sexual dos velhos, fala-se em descobrimentos de zonas erógenas, especialmente para os homens velhos, em liberação psicológica da repressão sexual, especialmente para as mulheres velhas. No entanto, chama a atenção que de tantos esforços de desconstrução para tornar viável e plausível o sexo na velhice, esteja ausente qualquer esforço em tratar a imagem dos velhos como atraente sexualmente. Não se encontra na literatura que temos revisado nenhuma tentativa de propor questionamentos sobre os padrões estéticos para avaliar o corpo envelhecido, ver nele atratividade sexual, tomá-lo como inteligível do ponto de vista erótico. Esses parecem ser alguns dos limites dessa empreitada em ampliar as fronteiras da sexualidade nos discursos especializados contemporâneos.

In 04/04/2013

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