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Brasil
Não podem mais adiar nossos sonhos. Estamos por nossa própria contaEm 16 de novembro, Brasília ouvirá a voz de jovens negros e negras que estão fora das universidades, mulheres negras que ocupam a base da pirâmide social, atrizes e atores negros fora das televisões e da publicidade, quilombolas sem títulos de suas terras, homens e mulheres negras fora dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Na Capital Federal se ouvirá a voz de milhares de negras e negros brasileiros que participarão da Marcha Zumbi + 10 para enfatizar a continuidade das lutas políticas travadas pelas organizações do movimento negro contra o racismo, as desigualdades e as injustiças gritantes a que está submetida a população negra no Brasil. Reparação será a palavra de ordem e a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial a maior bandeira diante da intolerância histórica do Estado para com a população afrodescendente. Milhares de pessoas chegarão do Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste, enfrentando dificuldades mas resistindo e seguindo o exemplo de Zumbi, mostrando ao mundo que somos muitos e muitas e que o racismo brasileiro não está somente na cabeça de alguns e algumas. O movimento negro tem muitas faces mas sempre é uma continuidade da grande luta de libertação, cujo líder e referência básica é Zumbi dos Palmares. Essa luta é propriedade nossa, de todo um povo. A Marcha que irá caminhar no dia 16/11 está sendo coordenada por uma articulação nacional composta por várias organizações e grupos do movimento negro com representação em 15 Estados. Zumbi+10 é o momento dos afrodescendentes expressarem a força e a garra na luta pela igualdade racial, além de sensibilizar a sociedade para a realidade de exclusão do povo negro, a cobrança de políticas públicas específicas de promoção da diversidade e exigir que sejam cumpridos os compromissos assumidos pelo Brasil nas Conferências do Sistema Nações Unidas, além do cumprimento da Constituição Brasileira. Ir à Capital Federal significa chamar a atenção para a conjuntura atual de exclusão do povo negro, onde do total de 53 milhões de pobres no Brasil, 68% são de negros e negras. O ponto de partida da Marcha Zumbi + 10 se coloca acima de conjunturas e governos. O combate ao racismo e às injustiças passa pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial como um instrumento legal, incluindo-se o Fundo Nacional da Promoção da Igualdade Racial porque o Estatuto sem definição de recursos, sem previsão orçamentária, não tem realidade política. Precisamos de ações urgentes para mais da metade da população dos sobreviventes do racismo e da pobreza brasileira. Já estamos ouvindo o tambor, convocando a todos e todas à luta para derrubar as barreiras que tolhem o nosso povo e partir para a conquista da plena liberdade, igualdade e justiça social. MULHERES NEGRAS No Censo Demográfico de 2000, somos 169,5 milhões de brasileiros, dos quais 50,79% são do sexo feminino. Os negros já perfaziam 45,3% do total da população brasileira e as mulheres negras equivalem a 49% da população negra, correspondendo a 37.602.461 habitantes. E como vive essa parcela significativa da população brasileira? A mulher negra tem sido, ao longo de sua história, a maior vítima da profunda desigualdade racial vigente em nossa sociedade, pois é sobre ela que recai todo o peso da herança colonial, onde o sistema patriarcal apoia-se solidamente. A mulher negra está exposta à miséria, à pobreza, à violência, ao analfabetismo, à precariedade de atendimento nos serviços assistenciais, educacionais e de saúde. Os poucos estudos realizados revelam um dramático quadro que se prolonga desde há muitos anos. Uma dramaticidade que está não apenas nas péssimas condições socio-econômicas produzidas por um sistema explorador, mas também na negação cotidiana das condições de ser mulher negra, através do racismo e do sexismo que permeiam todos os campos da vida de cada uma. Mulheres negras estarão em Brasília mostrando que o Estado brasileiro continua nos legando condições de vida cruéis e desumanas, incompatíveis com a cidadania quanto ao acesso à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho e ao lazer. Iremos à Marcha porque estamos rebeladas contra a intolerância religiosa e a violência racial, traduzida na morte precoce que rouba nossos filhos, nossas filhas, irmãos e irmãs, na infância, na adolescência e na juventude, impedindo que tenham o direito de chegar à vida adulta. Estaremos na Marcha por nossa própria conta porque acreditamos num projeto de nação com justiça social, econômica e racial. No dia 16 de novembro, vamos reavivar a nossa teimosia com a ousadia de dizer à sociedade e ao governo brasileiro, o país que queremos com a autoridade de quem construiu as riquezas desta nação. JOVENS Se queremos um Brasil verdadeiramente para todos e todas, não podemos concordar com o absurdo índice de 2% de jovens negros e negras com acesso a cursos superiores e com a média de 4,4 anos de frequência escolar de uma pessoa negra. No Brasil, a educação para o povo negro foi negada desde a época do Ventre Livre que garantia acesso à educação às crianças que nascessem. Com a Conferência de Durban, a sociedade brasileira consegue aceitar reserva de cotas para portadores de deficiência, mulheres. Mas em relação ao povo negro é mais difícil porque isto significa o pavor de dividir o poder. Conhecimento e poder caminham juntos e são instrumentos fundamentais para assegurar a cidadania. A adoção de ações afirmativas para afrodescendentes no sistema educacional de nosso país – segundo a procuradora do Estado de São Paulo, Flávia Piovesan, sustenta-se no argumento de ordem político-social. Se pretendemos uma sociedade mais democrática, com a transformação de organizações políticas e instituições, o título universitário ainda é um passaporte para a ascenção social e para a democratização das esferas de poder, com o empoderamento dos grupos historicamente excluídos. Há também o argumento jurídico, pois a ordem constitucional, somada aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil, acolhem não apenas o valor da igualdade formal, mas também da igualdade material. Reconhecem que não basta proibir a discriminação, sendo necessário também promover a igualdade, por meio de ações afirmativas. Se ao longo de nossa história, para os grupos vulneráveis a raça sempre foi um critério de exclusão, que seja hoje um critério de inclusão da população afrodescendente. Com apenas 2% de jovens negros e negras ocupando os bancos universitários, a dedução é rápida: existe uma reserva de cota de 98% para brancos e brancas. Vivendo nas periferias maltratadas das grandes cidades, com ruas mal iluminadas, sem saneamento básico, com escolas depredadas e professores mal preparados, um índice absurdo de desemprego formam um conjunto que leva o/a jovem a não encontrar perspectiva de vida digna. Os muitos jovens negros que hoje estão nas prisões são vítimas da ausência dos elementos essenciais para garantir cidadania. A sociedade em que vivemos foi erguida sob a égide do castigo, a chibata, a tortura, a palmatória. Por isso é muito difícil conseguir um comportamento social longe da violência. A maioria dos delitos praticados pelos/as negros/as é delito de sobrevivência. Do lado de fora das prisões, está o policial que deve estar a serviço da comunidade que deve ser capacitado para isso, e ser bem remunerado. Mas o policial mora num quarto e cozinha com o banheiro do lado de fora, numa favela, e, ganha um salário miserável. Este homem não pode tomar conta da vida de ninguém. Entre as inúmeras injustiças que cercam a juventude negra, o mercado de trabalho é inacessível. Nos anúncios publicitários, quando o requisito é “boa aparência”, os/as jovens negros/as conhecem bem o significado: uma entrevista no Departamento de Recursos Humanos de muitas empresas é o suficiente para barrá-los sem maiores explicações. Os/as jovens negros estarão na Marcha Zumbi + 10 exigindo a reserva de cotas nas universidades, mostrando que as cotas étnicas são direito à reparação e um modo pedagógico de obrigar os brancos ao aprendizado de coletivizar privilégios que usurparam de afrodescendentes; continuar a luta para que seja real a aplicação da Lei 10639 que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino brasileiro e a capacitação dos professores/as na aplicação da Lei. Também estarão em Brasília cantando rap, jogando capoeira, mostrando que ser jovem negro e negra no país inclui preservar a cultura ancestral, conhecer a verdadeira história que os livros didáticos insistem em não contar, formando novas lideranças para o Movimento Negro, e mostrando que aqueles e aquelas que ingressam hoje na universidade, advindos dos cursinhos pré-vestibular para negros, devem se orgulhar da luta, da garra em querer provar que todos são capazes, e que tudo poderia ser diferente se esse país não fosse racista como é. OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Os participantes da Marcha de 16/11 na Capital Federal vão exigir a democratização dos meios de comunicação para assegurar a representação da diversidade racial e pluraridade étnica e cultural do Brasil. Mulheres e homens negros estarão mostrando a necessidade da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial que estabelece que as emissoras de televisão, as agências de publicidade, os produtores de material publicitário e o Poder Público deverão assegurar a participação de artistas afrodescendentes em filmes, programas e peças publicitárias. A informação é imprescindível para a mudança desse cenário de desigualdades e falta de oportunidades. A Marcha Zumbi + 10 deverá agregar artistas que não desejam que seu trabalho esteja reduzido a papéis de escravos e trabalhadores domésticos sem conflito, sem história, a serviço de seus patrões brancos; jornalistas sem liberdade de noticiar os eventos da população negra que são ignorados nas redações dos grandes jornais e revistas; publicitários que são obrigados a criar suas campanhas isolando a participação de afrodescendentes. Esta é uma caminhada para unir todos e todas que lutam por cidadania e liberdade. A PALAVRA DE EMANOEL ARAUJO “Será lenda a nossa participação na construção da história deste país e da identidade de seu povo? Ou será que, ao contribuírem para a formação de uma identidade nacional que dá cara nova às velhas tradições de uma cultura européia , ao mesclar o imaginário europeu e lusitano a outras matrizes de um imaginário africano, precisamente por isso o establisment transforma esses negros em brancos? Ou a cor não importa? Mas, se não importa, por que os negros não têm acesso às principais instituições que grarantem reconhecimento, prestígio e poder no Brasil? Por que as universidades têm tão poucos negros nos seus quadros, enquanto as cadeias, os presídios e as ruas estão povoados desses cidadãos de segunda classe, todos pobres, todos pretos? “Penso na ambiguidade desta nossa história de que são vítimas os negros, numa sociedade que os exclui dos benefícios da vida social, mas consome os deuses do candomblé, a música, a dança, a comida, as festas de negros, esquecida de suas origens. E penso também que, ao invés de registrar o fracasso dos negros frente às inumeráveis injustiças sofridas, esta história termina por registrar sua vitória e sua vingança, em tudo o que eles foram capazes de incorporar à cultura brasileira. Uma cultura que guarda, através de sua história, um rastro profundo de negros africanos e brasileiros, mulatos e cafusos, construtores silenciosos de nossa identidade” (Trecho extraído do catálogo da exposição “Negras Memórias, Memórias de Negros”). A Marcha Zumbi + 10 contra o racismo e as injustiças sociais, e, pela cidadania e a vida é uma ação do movimento negro brasileiro e se constitui em um ato de indignação e protesto pelas condições em que vive o povo negro no Brasil, em função dos processos de exclusão social determinados pelo racismo e a discriminação racial em nossa sociedade. No dia 16 de novembro, Brasília ouvirá a voz de todas e todos nós, mulheres e homens negros, jovens, quilombolas, artistas, jornalistas, religiosos,anônimos de várias classes sociais exigindo a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, cotas para afrodescendentes nas universidades públicas, titulação e regularização fundiária das terras das comunidades quilombolas, recursos para o financiamento e a execução das políticas públicas de promoção da igualdade racial, democratização dos meios de comunicação, políticas que assegurem os direitos das mulheres negras, da juventude, a defesa das religiões de matriz africana contra a intolerância religiosa e a valorização das diversas expressões e manifestações culturais do povo negro brasileiro. Estamos na Marcha com força e alegria para deixar um legado aos que virão, construindo uma nova identidade de resistência para o futuro. Estamos na Marcha em 16 de novembro por termos uma orientação, organização e capacitação palmarina livre. Estamos por nossa conta não para dividir e sim com a liberdade do refletir e agir porque não aceitamos mais cangalha em nosso corpo, turvando a nossa visão. Desobediência civil ao jingle de que é dando que recebemos não como perdidos na noite, cobaias do processo, importar o saber griô do ontem e hoje dos nossos antepassados. Estamos por nossa conta porque não acreditamos no grande marketing submetendo o nosso povo ao franchising da senzala; contra essa economia que vai muito bem aonde a matemática usada é 1 + 1 negro = zero. Estamos por nossa conta para exigir igualdade de gênero e raça em tempo real. Estamos por nossa conta porque acreditamos num vento forte que espalhe as folhas da dignidade e da justiça para o nosso povo, em um processo de construção fora da planta baixa. CASA DE CULTURA DA MULHER NEGRA – Santos – São Paulo-Brasil Publicada em: 20/10/2005 |