Sexualidade adolescente como direito? A visão de formuladores de políticas públicas
Texto de Apresentação
Adriana Vianna*
Este livro, fruto originalmente da pesquisa de mestrado de Vanessa Leite, constrói-se em torno de uma pergunta nada simples de responder: como (e se) vem se concebendo e construindo a sexualidade de adolescentes como direito. Partindo desta indagação, em si já extremamente complexa, a autora traça um panorama inquietante, feito a partir do entrecruzamento entre temas que nos são caros por diversos motivos, que vão desde a naturalização das fases ou etapas da vida, até nossas utopias políticas e ferramentas de transformação do mundo. O título do trabalho revela, em verdade, inúmeras inquietações combinadas, mostrando que não apenas a junção dos termos nos assombra, mas cada um deles – sexualidade, adolescentes, direitos – é em si mesmo a porta de entrada para labirintos de incertezas.
Optando em certos momentos por uma perspectiva genealógica, como a que procura mostrar os processos tortuosos e conflitivos a partir dos quais foi gestada a atual política para infância e adolescência, a autora traz à tona contradições profundas em torno de quem seriam os sujeitos de direito da democracia brasileira. O deslocamento dos “menores” para a posição de titulares de direitos em situação especial não se realizou sem tensões e lacunas profundas, em parte fruto da disputa perene entre princípios de proteção e autonomia, de individualidade e responsabilidade, e em parte por implicações políticas, sociais e morais mais profundas, segundo as quais essas pessoas “pertencem” parcialmente a suas famílias e unidades domésticas e não podem ser consideradas plenamente confiáveis. Os antigos “menores” continuam a assombrar fantasmagoricamente os atuais “adolescentes” portadores de “direitos”.
Essa rica e necessária atenção genealógica ou processual, presente no livro como um todo, não obscurece, porém, outro plano investigativo igualmente fecundo, centrado no contorno sincrônico dado por um organismo específico de formulação e implementação de políticas para crianças e adolescentes, os conselhos de direitos. Fruto do mesmo processo de redemocratização de onde surgiu o Estatuto da Criança e do Adolescente e afinado, como a legislação, com modelos de gestão não apenas nacionais, os conselhos revelam-se lócus permeados por outras tensões, advindas da inserção e localização dos próprios conselheiros, mas também da inscrição de histórias de vida, trajetórias e perspectivas diversas.
Ao focar sua investigação nas questões em torno da sexualidade de adolescentes, Vanessa Leite expõe e faz avançar todas essas contradições de modo exemplar. Por um lado, indica com precisão a existência de uma forma dominante pela qual a questão parece condenada a ser evocada: como risco, problema, drama. Sexualidade e adolescentes quando colocados na mesma frase parecem fazer soar uma única melodia, feita de temores, desconfiança e necessidade de controle e vigilância ou, caso esses falhem, de consternação. Durante sua pesquisa, porém, Vanessa Leite não se contentou com a postura de indicar as lacunas nesse discurso. Expondo-se durante as entrevistas ou nas apresentações públicas que passaram a ser parte do processo mesmo de pesquisa, colocou a seus interlocutores – e aqui o termo procede, indo além do jargão contemporâneo fácil – as mesmas perguntas que fazia para si mesma. Por que não falar em termos de prazer, de escolha, de desejo, de autonomia? Como resposta, obteve silêncios, hesitações, constrangimentos. Mas também olhares produtivamente curiosos, confissões, diálogos sinceros. Colheu o melhor de uma etnografia bem feita: o registro de um processo compartilhado, em que a autoria da pesquisadora é nítida, mas em que aqueles que foram parte da pesquisa comparecem como pessoas reflexivas, questionadoras, angustiadas e cheias de incerteza.
A escolha por essa forma de se conduzir e de narrar o processo permite que nós, leitores, vejamos o quanto a gestão concreta dos corpos e experiências adolescentes tem cunho fundamentalmente moral, revelando na contraluz as concepções, os procedimentos e as práticas nem sempre explícitos por parte daqueles que atuam na formulação de políticas e programas para esses jovens. Cabe dizer que a autora pode fazê-lo sem qualquer tipo de arrogância e com rara competência justo porque nesse processo se confronta também com sua própria trajetória. Longe de retratar-se como “fora do campo”, ela nos permite pensar sobre essa geração de pesquisadores e ativistas que viveu as tentativas de combater perspectivas tuteladoras em relação a crianças e adolescentes e que se engajou seriamente nos debates sobre a desigualdade social e de direitos que atingia duplamente uma parcela da população, por marcas sociais mais amplas e pela condição de menoridade legal. Discutindo em certas passagens seu difícil processo de relativo afastamento desse campo para poder analisa-lo, ela nos guia através de sua paixão, seu comprometimento e sua competência em direção às zonas mais difíceis dessa discussão. Revela, assim, o modo como adolescentes se apresentam como espécies de personagens impensáveis dos direitos sexuais, transitando entre nossas fronteiras mais naturalizadas, como as que supostamente apartam moral e política, público e privado, liberdade adulta e proteção-controle juvenil.
O livro, em que pese a riqueza da pesquisa e a densidade dos argumentos, é menos uma resposta fechada às inquietações aqui apresentadas que uma provocação para que saiamos do lugar confortável de não discutir tais fronteiras. Terminamos sua leitura com a incômoda e produtiva consciência de que não há resposta fácil ao processo plural de constituição de “direitos” e que, como parte integrante desse processo, cabe-nos enfrentar com honestidade nossos próprios pressupostos e moralidades em busca de alternativas que sejam política e existencialmente libertadoras.
*Adriana Vianna é historiadora e antropóloga, doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, professora do PPGAS/MN/UFRJ.