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"No podemos convivir más con desigualdades"

A política de saúde será uma das pautas prioritárias da nova ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Eleonora Menicucci. Socióloga, especialista no campo da saúde da mulher, ela acredita que o direito à saúde é condição estruturante para a autonomia das mulheres. E para fortalecer tal autonomia, segundo a ministra, é necessário antes de tudo incidir sobre a cultura que “naturaliza” a desigualdade entre mulheres e homens.

“Mudar o padrão de desigualdade entre mulheres e homens deve ser um compromisso de toda a sociedade. O governo faz a sua parte, mas não será efetiva se os meios de comunicação, o movimento social, o legislativo, o judiciário, as universidades, os intelectuais, enfim, se o conjunto da sociedade brasileira não reconhecer essa necessidade, e agir para superar os padrões sexistas e racistas que ainda sustentam as formas habituais de sermos mulheres e homens”, afirma a ministra.

Feminista histórica da chamada segunda onda do feminismo brasileiro, com longa trajetória acadêmica focada especialmente na questão da saúde da mulher e forte engajamento no movimento sanitarista, Eleonora Menicucci acumula ainda em sua biografia o fato de ter lutado contra a ditadura militar no Brasil (1964-1985) – em algumas ocasiões ao lado da presidenta Dilma Rousseff –, tendo passado quase três anos na cadeia em São Paulo, de 1971 a 1973, em razão desta luta. Na seguinte entrevista concedida ao CLAM, a socióloga e ex-pró-reitora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), fala sobre as prioridades de sua gestão em relação a aspectos como a saúde, os direitos reprodutivos e o acesso das mulheres ao mercado de trabalho, à política e aos espaços de poder.

Qual a sua proposição política e as prioridades que irá estabelecer à frente da SPM, tendo em vista a atual agenda do feminismo brasileiro e sua militância pessoal neste movimento?

Em primeiro lugar, precisamos aprofundar e ampliar para o conjunto das mulheres brasileiras as conquistas que já vêm sendo alcançadas em relação à legislação, à educação, à justiça e ao acesso ao mercado de trabalho. Ainda que com maior escolaridade, as mulheres continuam com menor salário em praticamente todas as atividades econômicas. Queremos que as mulheres sejam parceiras e protagonistas em pé de igualdade nesse novo momento de desenvolvimento do país. Para isso, considero essencial manter os distintos canais de diálogo com a sociedade civil e com os movimentos de mulheres.

Também será prioridade a política de saúde. O SUS – Sistema Único de Saúde – é uma das grandes conquistas da sociedade brasileira e é preciso que o acesso e atenção às mulheres garantam a universalidade, equidade e integralidade no atendimento, diretrizes da Política de Assistência Integral à Saúde das Mulheres. E isso inclui os direitos sexuais e reprodutivos. O direito à saúde, nesta ótica, é uma condição estruturante para a condição de justiça social, da cidadania e autonomia das mulheres.

Como avalia os problemas que ainda persistem no campo da saúde no país, como a questão da alta taxa de mortalidade materna – que tem, entre suas principais causas, o aborto inseguro e clandestino e muitas vezes a falta de atenção e assistência integral? A taxa de 67 mortes por 100 mil ainda está longe da preconizada pela OMS e pelas metas do milênio...

O governo federal tem investido de forma muito persistente para melhorar a assistência à gravidez, ao parto e ao pós-parto. E reconhece que esta é uma questão séria para o sistema de saúde no país. A redução dos índices de mortalidade materna depende de um amplo leque de ações conjuntas de saúde que vão desde a prevenção da gravidez indesejada, o acesso à anticoncepção segura, ou seja, adequada às condições de saúde e à vida sexual das mulheres, o atendimento direto ao pré-natal, ao parto e pós-parto, e com certeza o atendimento ao aborto inseguro. Mas é preciso sempre enfatizar que a mudança nos padrões de saúde também depende de questões culturais, educacionais e de condições de vida em várias outras dimensões. É preciso, por exemplo, que as/os jovens – mulheres e homens – possam discutir com liberdade sua sexualidade. Tendo assegurados a informação e o acesso à anticoncepção, sentem-se mais seguros e com todas as condições para tomar decisões sobre sua vida sexual e reprodutiva. Para isso é necessário que eles encontrem acolhida sem preconceitos e com orientação adequada nos serviços de saúde.

A contracepção é um aspecto que, tanto para o movimento de mulheres quanto para especialistas no tema, ainda requer mais atenção e aprimoramentos. Dados preliminares do estudo “Nascer no Brasil: Inquérito sobre Parto e Nascimento”, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), indicam que 45% das brasileiras que dão à luz não planejam a gravidez. Como avalia as políticas de planejamento familiar/contracepção e de distribuição de métodos contraceptivos no país?

Muitas vezes, o problema não é tanto o acesso, mas a informação adequada e possibilidade de lidar com essa questão de forma mais direta, sem preconceitos. O sistema de saúde pública no Brasil, hoje, investe muito na disponibilidade de métodos anticoncepcionais na rede de saúde. É muito importante que a aquisição de anticoncepcionais também faça parte da Farmácia Popular, pois isso amplia muito o acesso. No entanto, ainda é preciso diversificar mais os tipos de métodos disponíveis, tornar esse tema presente também no cotidiano das escolas para que os/as jovens tenham canais permanentes de discussão e orientação. E também é indispensável que os serviços de saúde saibam informar sobre a contracepção de emergência, a profilaxia de DSTs e a prevenção da gravidez.

Em relação à violência contra a mulher, como avalia as políticas e dispositivos legais – como a Lei Maria da Penha – que o país atualmente dispõe? Acredita que ainda haja aspectos a serem aprimorados?

É necessário investir cotidianamente para que a violência contra as mulheres deixe de ser uma expressão recorrente nas relações de desigualdade entre mulheres e homens. Muito já foi feito, e tem sido feito nesta área, mas a eliminação da violência sexista e racista exige mudanças profundas na sociedade e ainda há muito a aprimorar nas políticas públicas para enfrentá-las.

A implantação da lei 11.340/2006 no Brasil, Lei Maria da Penha, representa um avanço significativo em relação aos direitos das mulheres, por tornar crime todo ato de violência física, moral, patrimonial, psicológica e sexual contra as mulheres na esfera das relações domésticas e familiares. E isso é reconhecido internacionalmente. Considera-se que o Brasil tenha um das melhores legislações no mundo em relação à violência doméstica.

É inegável a mudança provocada pela Lei Maria da Penha no imaginário e na vida cotidiana das mulheres. As pessoas, hoje, sabem que a violência não pode mais ser aceita como parte das relações interpessoais. Mas com certeza isso não é suficiente para romper com todos os condicionamentos das relações de violência e desigualdade que conformam a situação das mulheres.

A lei é um passo importante para a proteção da mulher, porém ainda resta muito a fazer, sobretudo em relação à ampliação das políticas relativas aos serviços públicos nas áreas da segurança, saúde e justiça, para que efetivem a prática da Lei em sua plenitude, tornando o atendimento e os serviços mais acessíveis, atuantes, céleres e respeitosos com as mulheres.

Dentre os nossos desafios, temos que estimular a criação de mais juizados especializados de violência doméstica e familiar que, conforme prevê a Lei, contemplem equipes multidisciplinares – imprescindíveis à organização e orientação dos serviços da rede de atendimento –, ampliar o acesso à justiça e fortalecer as ações de segurança e prevenção.

E como já mencionei, para alterar de forma mais consistente a persistência da violência contra as mulheres é preciso alterar as relações entre mulheres e homens, as relações de poder, fortalecer a autonomia das mulheres, incidir sobre a cultura que “naturaliza” a desigualdade entre mulheres e homens. Por isso, temos o desafio de fazer com que esta questão seja tratada também no âmbito da educação, da cultura, da comunicação, e seja um compromisso de mudança da sociedade como um todo. Vale destacar que a recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei Maria da Penha representou um avanço, porque dá poderes ao Ministério Público de continuar a ação de agressão mesmo se a vítima se arrepender e quiser desistir do processo. Trata-se do critério da incondicionalidade estabelecida pela Lei. Em outras palavras, agora o Estado pode agir independentemente da vontade da vítima.

Outro ponto importante é que agora qualquer pessoa pode denunciar a violência doméstica, o que, em boa medida, reforça a proteção à mulher e há a expectativa de que a quantidade de processos e condenações também aumente.

Acredita que ainda existam entraves relativos à s relações de gênero que obstacularizem o acesso da mulher ao mercado de trabalho, à política e aos espaços de poder?

A presença das mulheres no mercado de trabalho no Brasil vem se ampliando significativamente nas últimas décadas. Os dados da PNAD de 2009 explicitam o maior acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Cada vez mais as mulheres assumem uma parcela maior da responsabilidade econômica das famílias. No entanto, em relação às responsabilidades cotidianas, ao cuidado com as crianças ou pessoas dependentes, todo esse trabalho que chamamos de reprodução social, a responsabilidade é sobretudo das mulheres, uma vez que as mudanças nos padrões da divisão sexual do trabalho ainda é muito pequena. Isso significa, de fato, uma sobrecarga para as mulheres. Por isso consideramos tão importante as políticas públicas que possam incidir sobre esse cotidiano, de forma que a sociedade no seu conjunto – e os homens especificamente – compartilhem a responsabilidade sobre estas questões.

A divisão sexual do trabalho que ainda é a norma, tanto na vida familiar como no mundo do trabalho, é um obstáculo permanente para as possibilidades das mulheres no trabalho, na atuação política, no acesso ao lazer e à cultura.

A isso se soma a persistência de cultura e valores machistas que ainda se refletem em barreiras à ascensão das mulheres a posições de direção. Vivemos um momento muito importante para enfrentar essas questões. Quando temos uma mulher no mais alto cargo do executivo brasileiro e outras tantas mulheres em posições de decisão dos rumos do país, também se coloca na pauta pública que não é mais possível conviver com essa desigualdade.

Publicada em: 07/03/2012

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