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Brasil
El género en el tribunal
Desde o final da década de 1980, a advogada Miriam Ventura transita entre o meio jurídico e médico. A atuação em questões que envolvem o direito à saúde e a forma como esses direitos são garantidos – ou impedidos – abriu caminho para que continuasse sua formação, com mestrado e doutorado, na área da saúde pública. A formação profissional e acadêmica operou a aproximação com questões de saúde, sexualidade, gênero, e o interesse em abordá-las na interface do direito, saúde pública e bioética. O tema da transexualidade surgiu como representativo dos principais conflitos envolvidos nestes campos de estudos. Os anos de trabalho renderam o livro A Transexualidade no Tribunal: Saúde e Cidadania, fruto de sua pesquisa de mestrado e lançado em dezembro pelo CLAM e pela EdUERJ. Em entrevista ao CLAM, Miriam Ventura esmiúça como as discussões jurídica e médica sobre a transexualidade no Brasil vêm avançando nos últimos 10 anos, e estão intimamente entrelaçados, apontando os desafios e as perspectivas das políticas públicas nacionais nesta área. O título do livro reforça a esfera da Justiça como um espaço determinante para solucionar questões que envolvem a transexualidade. Qual a sua avaliação sobre o papel do Judiciário brasileiro em relação aos direitos dos transexuais? No Brasil, não temos uma legislação específica que trate da mudança de nome e sexo no registro civil nos casos de transexualidade. A pessoa interessada deve requerer a alteração por meio de ação judicial. Neste sentido, o Judiciário acaba tendo um papel importante na construção de argumentos e na consolidação de uma jurisprudência que estabeleça os direitos das pessoas transexuais. A fundamentação e a justificativa jurídicas que vêm sendo utilizadas articulam linguagem médica e jurídica, prevalecendo a concepção da transexualidade como doença e a alteração da identificação civil como parte da terapia definida pela medicina. Na medicina e no direito, o entendimento predominante enfatiza o direito da pessoa transexual ao acesso à terapia, como um aspecto do direito à saúde, indispensável à vida digna e à cidadania. A concepção da vivência da transexualidade como um direito de liberdade, na perspectiva dos direitos sexuais, não é prevalente nas normas e decisões analisadas. De que forma se dá essa articulação entre medicina e direito? E como isso reflete em decisões que tratam sobre a concessão de direitos aos cidadãos transexuais? No âmbito do direito e medicina, se admite amplamente o princípio ético e jurídico da indisponibilidade da vida e do próprio corpo cuja repercussão prática é a limitação da liberdade da pessoa decidir sobre atos que impliquem em algum tipo de intervenção no corpo, que viole sua integridade física sem fins terapêuticos. Na maioria dos países, há restrições legais para a doação de órgãos em vida , é vedada a amputação de partes do corpo sã ou que não se tenha justificativa terapêutica, por exemplo, um braço ou um útero. A proteção à integridade física e psíquica da pessoa é tratada pela legislação penal punindo qualquer tipo de lesão. O corpo e integridade física e psíquica da pessoa têm especial proteção do Estado, que impõe limitações até mesmo em relação à própria pessoa. Daí afirmarmos que nosso corpo não nos pertence, considerando que só podemos decidir sobre o que fazer com ele nos limites das normas jurídicas e médica . As transformações corporais desejadas pelo indivíduo transexual são exemplares no sentido de que elas envolvem a discussão sobre quem e como deve se decidir sobre as intervenções necessárias para a adequação de um corpo ao gênero vivenciado. São necessárias intervenções médicas, muitas vezes extensas, e jurídicas, para efeitos de identificação e legalidade das intervenções médicas. Neste sentido implica em um intenso diálogo entre normas éticas, jurídicas e médicas. O gênero parece fortemente ancorado em definições biológicas de sexo utilizadas na medicina. O Judiciário, muitas vezes, acaba apropriando-se do conhecimento médico para fundamentar suas decisões. É correto afirmar que a linguagem médica é hegemônica nas discussões sobre transexualidade nos tribunais? Sim. Para um indivíduo ter acesso a mudanças corporais, ele precisa de um diagnóstico (transtorno de identidade de gênero), ter no mínimo 21 anos, encontrar-se há pelo menos 2 anos em tratamento e desejar modificar sua genitália. Ou seja, a cirurgia de transgenitalização e a conseqüente alteração genital correspondente ao gênero vivenciado acabam sendo exigidas, também nos tribunais, como condição para que o indivíduo possa modificar seu nome e sexo na identidade civil . Em alguns trechos de decisões que destaco no livro, os juízes utilizam argumentos médicos para fundamentar a decisão de alteração da identidade civil e/ou a legalidade da intervenção médica. Fica claro que a permissão legal para as transformações que envolvem a transexualidade não se fundamenta na liberdade sexual da pessoa. Muitas vezes, as decisões judiciais são taxativas no sentido de que a mudança de nome e sexo no registro civil se justifica como uma medida terapêutica, dando continuidade ao processo de inclusão e reintegração social da pessoa. É uma espécie de “habeas corpus”por autorização médica. O acesso ao direito e à cidadania é mediado por um diagnóstico e uma intervenção corporal previamente estabelecida pela norma médica. Isto significa que há uma correspondência muito forte entre critérios e diretrizes médicas para o processo de transexualização e os judiciais para o reconhecimento do direito das pessoas transexuais alterarem sua identificação civil. O resultado final é que, nesse caminho, é criada muita confusão. Que tipo de confusão? Uma delas é a confusão entre sexo e gênero. Outra é a diferença entre condição sexual, e orientação sexual, isto é, entre transexualidade, travestilidade e homossexualidade. Por exemplo, um indivíduo transexual que tem orientação homossexual pode não ser considerado um transexual verdadeiro, desconsiderando-se que uma pessoa pode, por exemplo, se sentir feminina e sua orientação sexual também ser feminina, sendo uma transexual lésbica. São comuns esses equívocos que, conjugados com as diretrizes e critérios estabelecidos, podem criar muitos obstáculos para as transformações daqueles que não estão inteiramente adequados às normas estabelecidas. No livro, eu não analisei decisões judiciais relativas aos pedidos das/os travestis. Mas, por exemplo, elas têm muito mais dificuldade de conseguir as transformações corporais, porque a norma médica não considera travesti aquele que deseja e realiza mudanças em seu corpo. Então, o que acontece? A travesti que efetua as transformações corporais , em geral, é considerada um transexual não verdadeiro, porque não corresponde inteiramente à norma.. O desejo de modificar sua genitália é considerado imprescindível e conclusivo do diagnóstico médico que autorizará a inclusão no processo transexualizador ou a realização das transformações corporais desejadas. Portanto, há uma restrição de direitos que não protege as pessoas transexuais e travestis no momento que desconsidera sua especial condição e impede de forma taxativa e irrefletida, por meio de uma aplicação automática de normas pré-estabelecidas, de ter acesso à rede pública ou privada de saúde, e a uma assistência integral à saúde. A principal conseqüência é que as pessoas que não correspondem à norma procuram serviços clandestinos para fazer as mudanças, com riscos para sua saúde e repercussão para a saúde pública, , semelhantes, a meu ver, às restrições legais aos abortos voluntários que são realizados clandestinamente e em condições precárias. Outro aspecto é que a categorias sexo e gênero são utilizadas como sinônimos, não incorporando a abordagem das Ciências Humanas e Sociais. Há casos que a decisão judicial determina que a identificação civil seja como “transexual”, desconsiderando que a pessoa não é mais trans. Ela não transita, mas deseja mudar, quer ser homem ou mulher. A pessoa deseja um status sexual fixo e o Judiciário, infelizmente, não considera este novo status. O papel determinante do Judiciário na concessão da mudança no registro civil deixa a entender que as decisões de cada juiz podem ser distintas. No Brasil, há uniformidade e consenso dentro da classe de juízes? Sim, há certo consenso, mas lastreado nas definições médicas. Por exemplo, somente quem se transformou completamente e, principalmente, realizou a cirurgia de transgenitalização, está apto a requerer a alteração do nome e sexo no registro civil. Nos tribunais de Minas Gerais e São Paulo (região Sudeste), as posições eram mais conservadoras e até o final da minha pesquisa. O entendimento predominante negava o direito de alterar a identidade civil mesmo depois de completado o “processo terapêutico” de transformações corporais. No entanto, há pouco mais de um mês, um recurso do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou uma decisão do Tribunal de Minas Gerais, que vinha flexibilizando o nome, mas não o sexo nos registros de pessoas transexuais. A decisão reconheceu o direito das pessoas transexuais alterarem a identidade civil após as transformações. O entendimento minoritário, reformado pelo STJ, representa um problema grave, pois obriga alguém a viver em absoluta incompatibilidade por toda a vida , com constrangimentos e violações de grande repercussão. A exigência judicial da realização da cirurgia de transgenitalização para a alteração da identidade civil é um aspecto que deve ser problematizado e revisto pelos Tribunais. Deve-se considerar que, no Brasil, é comum que as pessoas realizem transformações corporais e já estejam vivendo o gênero masculino ou feminino quando chegam ao serviço de saúde. Além disso, uma pessoa deve esperar, no mínimo, dois ou três anos, às vezes até mais, para fazer a cirurgia de transgenitalização no sistema público de saúde. Isto significa que viverá anos sofrendo constrangimentos pessoais e sociais, até receber o “habeas corpus” para ser cidadã. Ao mesmo tempo em que se vê categorizado como um doente, a pessoa transexual encontra no amparo médico o caminho para ampliar seus direitos. Em que medida se pode criticar certa tutela da medicina sem se perder de vista que é por meio de um diagnóstico que direitos têm sido ampliados? A medicina está em todas as etapas do processo de transexualização. Faço uma crítica à tutela médica e as normatizações existentes para a prática médica com muito cuidado, pois a medicina tem e, deve continuar a ter, deveres e responsabilidades éticas e sociais em relação à proteção da pessoa, de sua saúde e integridade física e psíquica. O desejo de transformar o corpo existe não só nos casos de transexualidade, mas também em relação, por exemplo, às cirurgias estéticas com diferentes justificativas. Toda e quaisquer transformações corporais extensas e alterações de funções orgânicas devem ter atenção cuidadosa por parte da medicina e do direito, considerando as questões éticas, e de saúde pública que envolvem essas práticas. Então, há uma necessidade de uma regulamentação da prática e a incorporação dos avanços técnicos científicos com o fim de proteção à pessoa, usuários dos serviços médicos . Não se deve rejeitar a possibilidade de uso das normas regulamentares de forma favorável à pessoa e sua liberdade. Quando se discute a despatologização da transexualidade, por exemplo, há uma confusão entre o que implica considerar a condição transexual uma doença para justificar o acesso às transformações corporais, e a necessidade de proteção e promoção de direitos que esta condição requer. Esta condição pode trazer – e em geral traz – vulnerabilidades individuais e sociais, em razão da não aceitação no contexto cultural que se vive. Afinal, não é comum desejar corporificar um sexo diferente do seu nascimento. Conflitos pessoais e sociais são previsíveis e devem ser discutidos e solucionados. As intervenções médicas podem ser regulamentadas em uma perspectiva semelhante aos cuidados que se deve ter com as cirurgias estéticas por exemplo. As regulamentações sanitárias e éticas podem estabelecer os limites e as possibilidades dessas intervenções, com consentimento livre e esclarecido da pessoa, sobre os riscos e benefícios das intervenções, e a integral assistência à saúde física e psicológica. Uma pessoa que deseja uma cirurgia estética não é necessariamente uma pessoa doente porque não gosta de seu nariz, por exemplo. Qual o limite da responsabilidade médica e da liberdade dos usuários dos serviços de saúde são questões que devem ser aprofundadas nas discussões. A conclusão do meu estudo aponta que o modelo da tutela normativa que vem sendo exercida pela medicina e o direito, apesar de ter permitido avanços, em alguns aspectos, não protege ou promove de forma adequada os direitos fundamentais das pessoas transexuais, em especial, aquelas que não correspondem aos critérios normativos estabelecidos. Que tipo de direitos ainda não são garantidos, por exemplo? As pessoas travestis ou consideradas “transexuais não verdadeiros” não têm acesso ao processo transexualizador, pois não preenchem os requisitos exigidos na norma médica e admitido pela regulamentação sanitária do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS). Outro aspecto importante diz respeito aos transexuais masculinos (alteração do fenótipo feminino para o masculino). A cirurgia de transgenitalização ainda é considerada experimental pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que serve como base para as decisões jurídicas e sanitárias do SUS. Desde 2002, a mudança do masculino para o feminino (transexual feminino) não é mais considerada uma terapia experimental, o que permitiu que fosse incorporada ao SUS, pois os tratamentos experimentais só podem ser realizadas em instituições de pesquisa, conforme as normas éticas vigentes. O procedimento para os homens trans, no entanto, permanece como experimental, só podendo ser realizado em hospitais universitários. No final de 2010, o Conselho Federal de Medicina alterou a Resolução sobre o tema, por demanda do movimento social em parceria com o Ministério Público. Dessa forma, passou a considerar as transformações complementares para os homens trans, como mastectomia (retirada das mamas) e histerectomia (remoção do útero), não experimentais, mantendo apenas a cirurgia de transgenitalização como tal . Esta alteração normativa permitirá a cobertura pelo SUS, e a ampliação de acesso aos serviços de saúde para este segmento. Este entendimento reflete no Judiciário: tem sido aceita a mudança de nome e sexo no registro civil mesmo para os homens trans que não conseguem realizar a cirurgia de modificação genital, considerando os riscos de uma cirurgia experimental e que a pessoa já se submeteu a todas as demais intervenções médicas recomendadas. No entanto, tal permissão ainda se respalda na idéia de intervenção judicial terapêutica sendo assim, como a transgenitalização é considerada experimental, o risco é grande e a funcionalidade é comprometida. O juiz, mais uma vez, deve intervir nos limites da decisão médica. No entanto, não podemos deixar de considerar que o diálogo e a relação entre os campos do direito e da medicina na deliberação sobre a legitimidade e a legalidade de intervenções de grande repercussão são necessárias. Também não se pode afastar o fato que as transformações desejadas pelas pessoas transexuais são de grande repercussão e dependem de cuidados especiais de saúde por muitos anos como, por exemplo, a ingestão de hormônios e as alterações fisiológicas importantes que implicam o uso contínuo deste tipo de tratamento. Qual a sua expectativa para as discussões, em termos de políticas públicas, sobre a transexualidade no Brasil? É viável uma mudança de critérios para ampliar os direitos que ainda não estão disponíveis? Sim, penso que é viável. A Portaria do Ministério da Saúde que regulamenta o processo transexualizador segue diretrizes do Conselho Federal de Medicina (CFM). Mas avança no sentido que traz a idéia de assistência integral à saúde e, assim, permite a não centralidade da discussão na cirurgia de transgenitalização. Poderíamos ainda avançar mais na questão do registro civil. A Espanha, por exemplo, recentemente estabeleceu, por meio de lei, que a transgenitalização não é necessária para a mudança no registro. A pessoa vai ao cartório e faz a mudança. Isso facilitaria muito o processo brasileiro, porque seria desnecessário entrar com um pedido judicial para requisitar a mudança do nome e aguardar pela decisão, que pode levar muito tempo. Temos dois projetos de lei em tramitação no Congresso, um dos quais estabelece a não necessidade de transgenitalização para mudar o registro, como na Espanha. Vemos que as legislações tendem a consolidar entendimentos semelhantes, mesmo que com diferentes restrições. Por exemplo, há leis que autorizam a mudança no nome, mas não permitem a adoção. No Brasil, embora não seja uma tendência, há decisões judiciais que também restringem o direito à adoção e impõem exigências especiais para o casamento. O Legislativo brasileiro é conservador e, em temas mais sensíveis à moralidade pública e religiosa, os processos são lentos e difíceis. Se observarmos os projetos que tratam sobre transexualidade, criminalização da homofobia, legalização do aborto, adoção por casais do mesmo sexo, notamos como o cenário é adverso. Por isso, as críticas à medicina e à atuação judicial devem ser elaborados de forma cuidadosa, pois os avanços têm sido mediados pelo campo médico e respaldado pelo direito. A linguagem médica tem flexibilizado as normas jurídicas, abrindo oportunidades também no campo da saúde pública. O argumento terapêutico tem permitido retirar a discussão do âmbito exclusivamente criminal para trazê-la para o âmbito do direito à saúde e da compreensão mais ampliada da livre condição e orientação sexual como essenciais à liberdade e à cidadania. [PM1]Prefiro não incluir esta pergunta. Precisaria de um espaço maior para desenvolve-la de forma compreensiva. Acho que esta idéia já está incorporada nas primeiras perguntas. Publicada em: 10/02/2011 |