Em 1910 ficou decidido, durante a II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, na Dinamarca, que o 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher", em homenagem às mulheres que morreram em uma fábrica de tecidos de Nova Iorque em 1857, ao reivindicarem por melhores condições de trabalho. Já entrado o século 21, as mulheres passaram a ter uma presença maciça no mercado de trabalho – embora ainda com diferenças salariais e de oportunidades em relação aos homens –, ganharam direito ao voto e, em vários países, foram eleitas presidente. O Brasil, por exemplo, pode vir a eleger este ano a primeira mulher presidente – há duas candidatas com reais possibilidades de vitória – um marco no centenário da data.
Por outro lado, para muitas feministas brasileiras, esta década será marcada também pela palavra “resistência”. “Temos sofrido muitas derrotas de destituição de direitos. Temos que resistir para não perder o que já conquistamos”, diz Silvia Camurça, integrante da organização SOS Corpo e da Articulação de Mulheres Brasileiras. Na entrevista a seguir, ela fala da nova agenda do feminismo brasileiro, dos desafios que se impõem às mulheres nesta nova década, e do marco das candidaturas de Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PV) à presidência do Brasil.
Como avalia o caminho traçado pelo movimento feminista no momento em que se comemora o centenário do Dia Internacional da Mulher?
Nesses 100 anos, o movimento feminista se tornou uma proposta irreversível no mundo, enquanto proposição de organização de luta. Uma organização que se espalhou pelo mundo, se enraizou entre todas as camadas da população e setores de organização de mulheres. Termos diferentes expressões do feminismo – feminismo acadêmico, movimentos de mulheres jovens, negras, indígenas, trabalhadoras rurais, lésbicas etc. Os grupos de base cresceram de maneira inimaginável. O que garante a permanência do feminismo no mundo é seu enorme enraizamento.
Qual a agenda do movimento para o século 21? Que desafios ainda se apresentam?
Há um ponto novo e os outros são atualizações. Para o século 21, persiste a agenda contra a violência, pela autonomia do corpo e os direitos reprodutivos, e pela paridade na política. Na América Latina persiste com muita força a luta feminista nas políticas públicas. As mulheres das classes populares precisam do Estado para garantir seus direitos. No entanto, de dez anos para cá tem se colocado uma agenda nova, que é a crise do modelo de produção e organização da economia. O modelo atual de produção e consumo, além de injusto (o que já se sabia há cem anos), tem se mostrado insustentável, que é uma consciência nova assumida recentemente. Nós, mulheres, temos que enfrentar o debate sobre a necessidade no modelo de produção e consumo. Ao mesmo tempo em que a sociedade consumista não garante o direito ao consumo de forma igualitária, ela estimula o consumismo por parte dos setores de maior poder aquisitivo, o que acaba por excluir a maioria das pessoas do consumo. Isso chegou a um limite eticamente inaceitável e se apresenta como um desafio para o feminismo porque essa sociedade se assenta sobre a exploração das pessoas e da natureza. Não à toa que os grandes movimentos no século 21 serão o de povos indígenas e da população negra. A consciência social sobre esta problemática traz para o feminismo uma nova agenda, que é o repensar do padrão civilizatório das pessoas com a natureza. A economia do cuidado é uma nova proposição feminista neste campo.
Falando em velhas bandeiras, falta ainda muito para falarmos em iguais direitos?
Falta para as mulheres alcançarem os direitos que não temos na prática. Há uma consciência social de que é legitimo as mulheres terem direitos iguais aos dos homens, mas todos sabemos que na prática as mulheres não têm a maioria desses direitos - nem em relação à moradia, nem ao emprego, nem à educação. Seguimos discriminadas no ambiente de trabalho, seguimos como uma minoria nos espaços de poder, seguimos sendo acusadas de criminosas quando praticamos aborto. Setores conservadores resistem às conquistas do movimento e voltam a colocar a maternidade como imposição, negando-nos a possibilidade de termos projetos de vida que não incluam a maternidade.
Temos sofrido muitas derrotas de destituição de direitos. Os serviços de Aborto Legal em caso de estupro e risco de vida começam a ser fechados; a Igreja aumenta seu poder na área de políticas públicas e estas começam a retroceder, tanto no Brasil como em outros países da América Latina. Temos que resistir para não perder o que já conquistamos. Quando falamos na vivência dos direitos na prática social cotidiana das mulheres, estamos longe da igualdade de direitos. A resistência do Judiciário à implantação da Lei Maria da Penha demonstra uma não compreensão da gravidade do problema e uma dificuldade em aceitar o problema como uma questão de saúde pública. Fazer valer os direitos na prática é um novo campo de luta que se instala. Às vezes ganhamos o debate na sociedade – hoje em dia, por exemplo, sabe-se que bater em mulher é crime –, mas isto não se traduz na efetivação dos direitos, porque a correlação de forças entre o movimento e os poderes constituídos esbarra nesta problemática. Outro exemplo: qualquer pessoa vai dizer que as mulheres são capazes de governar o Brasil. Entretanto, temos uma lei de cotas que não é cumprida pelos partidos e nossos políticos não aprovaram que os partidos políticos fossem punidos por desrespeitarem tal lei ao não garantirem os 30% de representação reservado às mulheres.
Por outro lado, pela primeira vez o país tem duas candidatas concorrendo à presidência, e com chances reais de vitória. Essas candidaturas femininas sinalizam um avanço, não?
Certamente não deixa de ser um marco o fato de termos duas candidatas com possibilidades reais de serem bem sucedidas. Principalmente por serem duas candidatas que chegaram à política por militância própria, não por serem filhas, esposas ou parentes de políticos homens. As formas pelas quais elas chegaram à política são fatos novos: Dilma Rousseff é uma ex-guerrilheira e Marina Silva é uma ativista ambiental.
Depois de aprovar o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, ao se ver pressionado por entidades religiosas e outros setores conservadores, o governo recuou publicamente, prometendo mudanças na parte do texto referente ao aborto. Isso tem causado uma mobilização no movimento de mulheres. Como avalia este impasse?
Não vejo isto como um impasse. Queremos o Plano inteiro, não pela metade. O Plano é fruto de 50 Conferências e, por isso, estamos do lado de cá pressionando e defendendo a sua legitimidade. Em nosso país, a elite ainda não suporta a idéia de democracia participativa. Tentam desqualificar o Plano, dizendo se tratar de uma estratégia eleitoreira. O Plano não tem nada a ver com eleições, ficou seis meses disponível para consulta pública no site do governo. Estamos, sim, defendendo o Plano em sua integralidade.
Ainda em relação ao aborto, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir este ano a ação que solicita a descriminalização da interrupção da gravidez em caso de fetos anencéfalos. E o Projeto de Lei 1.135/1991, depois de sepultado nas comissões de Seguridade Social e de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, deve ser levado ao plenário. Acredita em algum avanço nestes debates, sendo este um ano de eleições?
O fato de o Plano Nacional de Direitos Humanos contemplar a questão do aborto já é um avanço. Porém, eu não acredito que na atual legislatura esta discussão vá adiante. A composição do Congresso Nacional é extremamente conservadora em relação aos direitos sexuais e reprodutivos. Não creio em nenhuma luta por direitos através de um Congresso que já realizou a CPI do aborto, uma CPI contra as ONGs e outra contra o MST. Pode ser que a partir de 2011 a discussão do aborto avance. No momento, nossas lutas são de resistência, para não perdermos os direitos que já conquistamos.