Eles estão nas bancas de jornal, na Internet, nas prateleiras das locadoras de vídeo, na programação da madrugada de canais de televisão. É assim, de maneira sutil, mas muito presente, que os filmes pornôs, ainda que fortemente estigmatizados, fazem parte do nosso cotidiano. Mas, afinal, quem são as pessoas que atuam nesses filmes? De onde vêm? Por que os fazem? E, principalmente, como os fazem? Esses foram alguns questionamentos que levaram a antropóloga colombiana María Elvira Díaz Benítez a dar início à pesquisa que resultou na tese de Doutorado “Nas redes do sexo: bastidores e cenários do pornô brasileiro”, defendida em fevereiro no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/UFRJ).
Sua tese recebeu indicação de publicação e o livro, desdobramento da pesquisa, será lançado em 2010 pela Editora Zahar. A antropóloga também é a organizadora da coletânea Prazeres Dissidentes, a ser lançada em setembro pelo CLAM e pela Editora Garamond. A coletânea reúne 20 artigos que tratam de temas como incesto consentido, pedofilia, prostituição, crossdressing, entre outros.
Para a pesquisa de sua tese – feita através do método de observação direta das filmagens – a antropóloga passou um ano e meio entre idas e vindas a São Paulo, cidade que concentra o maior número de produtoras pornô do Brasil. Ao longo da investigação, María Elvira conta que buscou analisar os bastidores da produção de filmes pornôs no país e, nesse processo, acabou deparando-se com uma extensa rede social. Esta incluía não apenas pessoas que estavam diretamente envolvidas com a produção – como atrizes, atores, diretores, cinegrafistas –, mas também donos de locadoras de vídeo e bancas de jornal. A ampla rede compreendia ainda lugares como: boates, privês, saunas, casas noturnas, sites na Internet, determinadas ruas, sex shops etc. Assim, partiu do fato de que para entender as atividades envolvidas na produção de pornô, é preciso olhar para seu entrecruzamento com diferentes tentáculos do mercado do sexo, e para os modos como as pessoas transitam por diferentes contextos da rede.
“A produção de filmes pornô é só mais um fio no mercado de sexo e estes se concatenam entre si. Por exemplo, para recrutar atores e atrizes, as pessoas encarregadas dentro da equipe para esta atividade – ou recrutadores como chamei em meu trabalho – vão justamente a esses lugares. Eles funcionam como uma espécie de olheiros, têm uma espécie de “dom” especializado do olhar, pois conseguem enxergar nos recrutados as qualidades estéticas e corporais que o mercado precisa, com seu olhar conseguem antecipar o gosto dos consumidores, imaginar os prazeres que garotos, garotas e travestis podem oferecer. Então, voltando à grande rede, existem ligações entre as pessoas que trabalham nesses locais, como barman e donos de boate, com os produtores de pornô para o trânsito das pessoas que seriam o elenco dos filmes”, explica.
As mulheres e os homens de filmes gays são, segundo a pesquisadora, os principais alvos de recrutamento, e são mais frequentemente renovados neste mercado, enquanto os homens (dos filmes hetero) permanecem por mais tempo. “As mulheres, no mercado heterossexual, assim como as travestis, em seu nicho de mercado, são as protagonistas das capas, são o destaque, tanto do material publicitário como do próprio filme. É nelas que se concentra o olhar da câmera. Aliás, no começo de suas trajetórias, elas são chamadas por diferentes produtoras para trabalhar em diversos filmes. Tudo isso gera um desgaste da imagem e sua renovação é o que mantém “aquecido” o mercado. Já os corpos inteiros dos homens de filmes hetero praticamente não aparecem nas imagens nem nas capas. Nos filmes, muitas vezes só o que se vê são seus pênis, pois o resto de seu corpo não tem tanta relevância nestas estéticas. Mas o pênis, ele só, possui uma enorme carga simbólica, é, de fato, o fio condutor da narrativa”, afirma a antropóloga.
Segundo Maria Elvira, nos filmes gays, a lógica é outra em se tratando da exposição dos corpos “Os homens, tanto aqueles que fazem o papel de passivos quanto os que assumem o de ativos sexuais, têm o corpo inteiro exibidos: rosto, costas, nádegas, braço, perna etc. Os operadores de câmera usam outras técnicas de captação da imagem, fazem questão de mostrar detalhes que têm potencial erótico como a dilatação dos músculos ou até as gotas de suor descendo pelo abdômen. Eles acreditam que é isso que esperam os consumidores de filmes gay, porque possuem outro olhar. Daí também decorre a grande exposição destes rapazes e a necessidade de renovação se dá por conta disso”.
Para a pesquisadora, no caso das mulheres, entrar nesse mercado implica, para muitas delas, transgredir normas e expectativas familiares e se tornar alvo de estigmas. É por este motivo que, apesar da maior necessidade de renovação e dos cachês mais altos, recrutá-las é tarefa bem mais difícil. Para os homens, a experiência é bastante diversa: “Encontrei, por exemplo, alguns garotos que faziam filmes hetero que eram parabenizados por seus pais e pelos irmãos homens pelo fato de serem os ‘garanhões’ que faziam pornô. Muitos pensam o pornô como uma maneira de reafirmação pública de masculinidade. Por outro lado, não encontrei esse tipo de experiência com nenhuma mulher”, diz ela.
Entre os critérios envolvidos no recrutamento do elenco um dos mais importantes é a beleza, palavra que, como observa a pesquisadora, está atravessada por muitos outros fatores, como idade, estilo, carisma, sensualidade, cor etc. Com efeito, este último quesito é freqüentemente associado à virilidade, isto é, ao “imaginário da lascívia bestial do homem negro”, o que o torna um ponto positivo em todos os mercados, relacionando-os frequentemente com a atividade sexual, não somente em filmes gay e travesti, mas também em filmes hetero. Nestes últimos, a idéia da lascívia é exacerbada, por exemplo, em gang bangs, filmes em que vários homens fazem sexo com uma única mulher, sendo que, no pornô nacional, muitas vezes estes homens são negros e a mulher, loura.
Em relação às mulheres, María Elvira chama a atenção para o fato de que há uma grande variedade de corpos “racializados” aceitos na pornografia: as louras, por vezes simplesmente apelidadas de “gaúchas”, são muito procuradas, o mesmo ocorre com o tipo que o mercado costuma definir como “latinas”, isto é, mulheres de peles claras e cabelos pretos e longos – na prática, os cabelos longos (artificiais ou não) são quase que uma regra neste mercado, na medida em que é percebido como um importante signo de beleza. As asiáticas compõem outro tipo bastante cobiçado nos filmes pornôs realizados no Brasil, sendo que muitas vezes estas são associadas à estéticas “ninfetas” ou representações de “lolitas”, isto é, mulheres com aparência adolescente, “colegial”. Em relação às “mulatas”, a pesquisadora faz questão de destacar que o termo se refere à “mulheres de pele marrom, mas com cabelos alisados e traços faciais mais próximos dos brancos do que dos negros”. As mulheres de traços faciais fenotípicos tipicamente negros, no entanto, são recrutadas apenas em poucas ocasiões. A antropóloga diz conhecer no Brasil apenas uma única produtora, no Rio de Janeiro, que trabalha frequentemente com mulheres negras. A ausência, explica Maria Elvira, se deve ao fato de que elas não são consideradas bonitas dentro dos valores estéticos que manejam o mercado pornô, o que se demonstra no fato de muitos realizadores dispensá-las no recrutamento, aludindo a que os consumidores pouco consomem os filmes por elas protagonizados.
“Até nas produções de sexo inter-racial sua participação é relativa, porque estas geralmente priorizam as duplas de homem negro com mulher loura ou homem negro com mulher asiática. Ou então mulata com homem branco”, acrescenta.
Sexualidades consideradas “espúrias”, assim como corpos vistos como “anormais”, são também trazidas à baila por produções diferentes das convencionais. Neste rol, do qual fazem parte os chamados “filmes bizarros”, incluem-se diferentes corpos e práticas sexuais: aqueles que exibem práticas consideradas “extremas” (zoofilia, escatologia, ou sexo com vários tipos de excrementos humanos), ou pornô com corpos considerados “anômalos” (pessoas anãs e pessoas mutiladas, por exemplo), ou com indivíduos que mesmo não possuindo corpos “anormais”, divergem dos padrões hegemônicos de beleza (pessoas idosas ou obesas, extremadamente tatuadas ou perfuradas com piercings, extremadamente peludas na região pubiana, e até mulheres grávidas, entre outras). Muitas vezes a categoria bizarro confunde-se com a classificação de fetiche, embora entre estas existam diferenças, como explica a antropóloga em sua tese.
“Com o rótulo bizarro, o pornô cria uma linha divisória entre o que é normal, bonito, agradável e aquilo que é anormal, feio. Muitos desses filmes são feitos com uma grande carga de humor desde os títulos até as fotografias escolhidas para as capas e a divulgação. Alguns corpos fazem alusão socialmente ao riso. As pessoas anãs, por exemplo, participam de programas de humor e de circos. Jorge Leite, um antropólogo brasileiro, pioneiro neste país nos estudos sobre pornografia bizarra, associa essas representações aos antigos freak shows. Na prática, eles tornam mais perceptíveis os estereótipos que já existem. Outros corpos e especialmente algumas práticas, como por exemplo o sexo com animais ou com fezes, aproximam-se mais das estéticas do grotesco”, destaca.
E se pessoas idosas integram o chamado gênero bizarro, é porque a juventude é parte fundamental do que seria o pornô mainstream. Com efeito, ressalta a pesquisadora, um dos estilos de filmes mais vendidos no Brasil tem no elenco atores de “visual adolescente”.
Sexo coreográfico e disposições de gênero Com efeito, destaca a pesquisadora, a pornografia atinge justamente as fantasias das pessoas e, por isso, os corpos recrutados para os filmes mainstream precisam ser notadamente malhados e exuberantes, como indo além dos corpos cotidianos. As práticas sexuais também precisam ser espetaculares, dessa forma, algumas posições são pouco utilizadas, como por exemplo, a tradicional “papai e mamãe”.
Segundo a pesquisadora, o sexo anal pode ser visto como a prática não convencional mais realizada no pornô. O que era antes considerado, de certa maneira, uma prática dissidente, converteu-se no dia-a-dia da pornografia. “Tratando-se de pornô brasileiro, a exibição da ’bunda’ torna-se fundamental em função do imaginário de nação construído em torno desta parte do corpo, que é mostrada como aquilo que singulariza o povo brasileiro, evidenciando discursos de brasilidade. Isto é enfatizado nos filmes pornôs de Carnaval”, analisa.
O sexo pornô, segundo María Elvira, responde a uma lógica seqüencial de posições estrategicamente pensadas como em uma espécie de “coreografia”. Esta, em geral, começa com beijos na boca rápidos e curtos – justamente porque os longos são associados a casais que mantém uma relação afetiva. Deve-se destacar que os seios não costumam tomar muito tempo da coreografia, mas são importantes para exibir a beleza do corpo feminino, seja mulher ou travesti. O sexo oral seria, portanto, a terceira parte do script, seguido das penetrações que bem podem começar com dedos e, geralmente, terminar com penetrações anais e a ampla exposição do pênis. Estas coreografias variam dependendo do segmento do mercado, transparecendo assim alguns marcadores sociais da diferença e alguns discursos sobre normatividades e transgressões de gênero e sexualidade. Por exemplo, a pesquisadora observa que nos filmes direcionados ao público hetero, o sexo oral é praticado por homens e mulheres, porém, em grande parte das produções feitas com travestis, o homem é o único a recebê-lo.
“Os filmes pornôs com travestis geralmente fazem o que classifiquei como ‘sexo heterossexual com travesti’, isto é, usam o corpo da travesti como se fosse um corpo de mulher, recorrendo às mesmas disposições de gênero. Isso significa que a travesti faz o papel de mulher, e seu pênis não possui a relevância que este órgão costuma ter nas estéticas hetero e gay, às vezes, não é necessário nem que esteja ereto. Isto não quer dizer que o pênis da travesti não seja importante. Mesmo quando não é penetrador, este é importante para a cena, porque ele simboliza a diferença desse corpo feminino, põe em cena um outro feminino possível. Paradoxalmente, os filmes brasileiros que mais têm sido premiados internacionalmente são aqueles que rompem com essa disposição de gênero e a travesti também é penetradora”, comenta.
E se no caso das travestis a ereção nem sempre é requisitada, para os homens que assumem um papel sexual ativo ela é obrigatória. Assim, antes da gravação, os homens se preparam para ter uma prolongada ereção, porque dela dependerá sua performance. Enquanto alguns fazem uso de medicamentos, como pílulas ou injeções, outros a atingem através da concentração e a masturbação, que deve ser lenta e controlada, para evitar que a ejaculação ocorra antes do momento desejado. Com efeito, a masturbação é um recurso freqüente, já que praticada a cada vez que a gravação é interrompida – para retocar a maquiagem, corrigir a luz, secar o suor etc. –, de modo que o ator não perca a ereção.
O orgasmo – “o ponto final da obra, o auge da performance”, na análise da pesquisadora – é vivenciado de maneiras diferentes entre homens e mulheres. No caso masculino, a ejaculação tem que ser visível para a captação da câmera, ou seja, não pode ocorrer dentro do corpo do(a) parceiro(a). Posicionado de modo a favorecer a aproximação do cinegrafista, o homem geralmente ejacula sobre o corpo do passivo: no rosto, nas nádegas, nos seios etc. As mulheres, como todos os colocados no papel do feminino, por sua vez, demonstram o orgasmo através de um registro mais auditivo: gemidos, gritos, palavras. De fato, o recurso à fala na pornografia é, principalmente para os femininos ou para aqueles que não ejaculam em cena, bastante relevante. Estes aprendem a fazer o que seria um “gemido pornográfico” e a transa deve vir acompanhada de um picante diálogo. Nesse sentido, observa a antropóloga, o orgasmo feminino tem efeito sonoro dramático, enquanto o masculino é visual.
Há disposições em que este esquema é transgredido: “Alguns diretores fazem questão de que, por exemplo, em filmes gays, onde somente um dos atores é o penetrador, o passivo também ejacule mediante a masturbação. Ali, esse sêmen recobra força visual. Mas é notório como geralmente o sêmen destes passivos não recai nem toca o corpo do ativo. Assim, por meio do sêmen, o pornô elabora claros enunciados de gênero e, nestes arranjos, somente os colocados simbolicamente no papel do feminino podem receber ou ter contato corporal com ele”. acrescenta.
Perguntada se o pornô é transgressor, a pesquisadora afirma que “o pornô transita entre as fronteiras da transgressão e o conservadorismo. É transgressor porque desafia juízos morais que têm colocado a pornografia como o lado ‘sujo’ do erotismo, criando essa diferenciação entre o vulgar e o erudito, distinção esta que não faz sentido estabelecer. É transgressor também porque coloca em cena um sexo ‘carente de afetos’, desafiando o ideal do amor romântico, e pela maneira como expõe as práticas: de uma maneira crua, milimétrica, ‘despudorada’. Também é transgressor porque coloca em cena práticas sexuais dissidentes e as chamadas ‘perversões sexuais’. Mas é notório como o pornô pode ser transgressor quanto às práticas e, ao mesmo tempo, completamente conservador quanto às disposições de gênero. Em minha pesquisa eu percebi o quanto a heteronormatividade é crucial nessas redes, o quanto a masculinidade é valorizada. Por outro lado, o pornô é conservador pela forma como reitera estereótipos dos mais variados”, finaliza.