Poucos meses depois da decisão da Corte Constitucional da Colômbia de descriminalizar o aborto em três circunstâncias – estupro, risco de vida ou à saúde da mulher ou inviabilidade do feto – o governo colombiano expediu, no dia 13 de dezembro, o Decreto nº 444, que garante, através de um conjunto de normas, o acesso a serviços de aborto seguro para todas as mulheres daquele país. No Brasil, onde o debate em torno do assunto encontra-se suspenso no Congresso Nacional, a pesquisa “Legislação sobre aborto legal e serviços de atendimento: conhecimento da população brasileira”, realizada pelo Ibope para a organização Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) mostra que quase metade dos brasileiros (48%) desconhece as situações em que o aborto pode ser feito legalmente e que grande parte da população (95% dos entrevistados) não sabe que hospitais atuam nos casos de aborto legal em seus municípios.
“A falta de conhecimento do direito inviabiliza que as pessoas procurem os serviços”, afirma a psicóloga Rosângela Talib, coordenadora do trabalho, que, além do levantamento do Ibope, incluiu também uma pesquisa feita pelas próprias técnicas do CDD com hospitais credenciados para oferecer o serviço.
No Brasil, o aborto é permitido em caso de gravidez decorrente de estupro ou quando oferece risco de morte para a mãe – artigos previstos no Código Penal de 1940. Ao serem perguntados espontaneamente, 35% dos entrevistados citaram a primeira hipótese, 17% mencionaram a segunda e 16% incluíram um terceiro item, que não está na lei, mas é permitido em alguns casos, por autorização judicial: quando o feto apresenta graves problemas. Houve ainda quem atribuísse a permissão a mães com Aids (25%) ou à falta de recursos econômicos (7%).
O objetivo do estudo foi levantar informações sobre o conhecimento da população brasileira a respeito dos permissivos legais para realização do aborto e dos serviços públicos que prestam esse atendimento em cada estado ou município. “A opinião da população é importante porque permite verificar em que medida a implementação dessa política pública em especial tem sido ou não eficiente. Os resultados da pesquisa mostraram o quanto precisa ainda ser realizado para que os serviços de aborto legal cumpram seu papel de atender a população que necessita”, diz Rosângela.
Para a psicóloga, a prioridade é investir na implantação de serviços nas capitais dos cinco estados brasileiros que, segundo os dados da pesquisa, não dispõem de nenhuma unidade ou ainda não prestaram atendimento: Roraima, Amapá e Tocantins (Região Norte); Piauí (Região Nordeste) e Mato G. Sul (Região Centro-Oeste).
A que a sra. atribui essa acentuada falta de informações sobre a interrupção da gravidez garantida por lei? De que forma isto influencia no debate pela descriminalização do aborto no país?
O desconhecimento da população sobre os permissivos legais para o abortamento resulta de uma total falta de informação que nada mais é do que um reflexo da ausência de discussão na sociedade sobre o tema. Esse desconhecimento reflete desfavoravelmente na implementação de políticas públicas que visem à redução da mortalidade por aborto inseguro. A falta de conhecimento do direito inviabiliza que as pessoas procurem os serviços. A ausência de demanda somada à falta de divulgação dos serviços existentes torna perfeitamente explicável o total desconhecimento das pessoas sobre esta política pública.
A pesquisa mostra que, desde a implementação do serviço de atendimento a casos de aborto legal no primeiro hospital, em 1989, foram realizados apenas 1.606 atendimentos a mulheres que tinham o direito ao aborto. Ao lançar luz sobre a problemática da clandestinidade e dos casos não registrados, de que maneira o estudo pode contribuir para a solução desse problema de saúde pública?
Descobrimos, no decorrer da pesquisa, que o número de atendimentos registrados pelos serviços não reflete a realidade porque nem todos os atendimentos efetuados foram registrados separadamente. O resultado é que o número de atendimentos efetivamente efetuado pode estar subsumido. O estudo pode contribuir para minimizar a ausência de estatística confiável sobre o assunto. Como se sabe, a importância de se ter informações confiáveis sobre as políticas publicas implementadas é pelo fato delas poderem ser avaliadas e de acordo com os resultados serem mantidas ou não.
As pesquisas realizadas por CDD em 2005 (1ª pesquisa) e em 2006 (2ª pesquisa), contribuíram para minimizar essa ausência de informações na medida em que “forçou” os serviços a apresentarem dados de atendimento. O resultado positivo pode ser verificado na segunda rodada da pesquisa, em 2006, quando houve uma maior facilidade de obter as informações solicitadas porque muitos serviços tinham implementado a sistematização dos dados.
Entre as opções de respostas disponibilizadas aos entrevistados, foram incluídas algumas que não fazem parte dos permissivos do aborto legal. Dentre estas, chama atenção a interrupção da gravidez quando a mulher tem AIDS, apontada por 25% dos entrevistados. Ainda em menor proporção, 14% pensam que o aborto é legal nas seguintes situações: por falta de recursos econômicos (7%), quando a mulher decide (4%) e quando o método anticoncepcional falha (3%). O que essas respostas traduzem?
Essas respostas traduzem, principalmente, um total desconhecimento da população sobre a questão. As possibilidades aventadas pela população para a realização do abortamento refletem, logicamente, a forma como pensam que a questão deveria ser tratada, tanto que o direito da mulher decidir é dado só por (4%) da população, o que mostra a necessidade de disseminar mais informações sobre o assunto.
Quais as expectativas em relação ao debate sobre a descriminalização do aborto neste segundo mandato do presidente Lula? Acha que o cenário será favorável à continuidade da discussão na esfera federal?
As expectativas são de um embate de forças sociais, de um lado os conservadores com uma posição completamente contrária a descriminalização do aborto, e do outro lado, várias organizações da sociedade civil que trabalham com as questões de saúde sexual e saúde reprodutiva e que são favoráveis à mudança da legislação porque é um direito garantido na legislação e porque evitaria milhares de mortes de mulheres causadas pelo aborto inseguro. Colocar a questão do abortamento na dimensão dos direitos humanos é colocar a discussão em um outro patamar, que nos permite entender o direito da mulher de decidir sobre o seu corpo. Essa discussão que deve ser colocada em pauta na sociedade.