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Senhoras de si

O debate sobre o tráfico de mulheres brasileiras para o exterior é motivo de preocupação para ativistas nacionais e internacionais e agentes governamentais. O tema ganhou destaque e o Governo brasileiro lançou uma campanha divulgada através do slogan “Se alguém oferecer comida, casa e roupa lavada no exterior, desconfie”. O assunto está sendo abordado na novela Belíssima, de grande audiência no país. A entrevista com a antropóloga Adriana Piscitelli (PAGU/Unicamp), conclui uma série de quatro textos sobre prostituição e exploração sexual realizados pelo CLAM: Cidadania ameaçada, Intervenção contraditória e Nem tão exótico assim.

Para Piscitelli, embora o debate público muitas vezes confunda turismo sexual e migração voluntária de mulheres com o tráfico, é preciso lembrar que se trata de problemáticas diferentes. “O turismo sexual passou a ser quase automaticamente ligado ao tráfico internacional de mulheres e adolescentes. Como resultado dessa conjunção, a lente da vitimização que permeia o debate sobre o tráfico passou a tingir não apenas as ações das adolescentes, mas também as das mulheres envolvidas no turismo sexual”, observa ela.

A antropóloga realizou a pesquisa “Entre a Praia de Iracema e a União Européia: turismo sexual internacional e migração feminina”, na qual aborda a migração de mulheres do Nordeste do Brasil para alguns países europeus para se dedicar ao trabalho sexual. “Utilizo deliberadamente o termo migração para sublinhar minha percepção dessas mulheres como pessoas à procura de oportunidades econômicas e sociais”, diz ela em artigo do livro Sexualidade e Saberes: convenções e fronteiras (CLAM / Editora Garamond).

Para a pesquisadora, o fato de o turismo sexual facilitar o tráfico não significa que as mulheres que migram em contextos de turismo sexual possam ser consideradas vítimas de maneira indiscriminada. “A migração, inclusive a ilegal, não pode ser confundida com tráfico”, afirma.

Na pesquisa, Adriana situa as construções sociais sobre o Nordeste e o Brasil em uma perspectiva comparativa com outros países da América Latina e de outras partes do mundo. “Uma vez imersa nesse universo de pesquisa, diversos aspectos me fizeram ver a importância de compreender a inserção do Brasil na transnacionalização do mercado sexual. Isso me levou a realizar outros estudos acompanhando as trajetórias das minhas entrevistadas na Itália e explorando a inserção de brasileiras no mercado do sexo espanhol”, lembra ela. Nesta entrevista, ela fala dos resultados de seu estudo e das diferenças entre turismo sexual e tráfico bem como entre prostituição forçada e voluntária.

A cada ano, um número grande de mulheres migra de países pobres ou em desenvolvimento para ganhar dinheiro como prostitutas em países desenvolvidos, especialmente os europeus, na expectativa de ascensão econômica. Esta migração pode ser considerada tráfico?

Para pensar tratar-se ou não de tráfico de pessoas, temos que considerar as conceitualizações sobre tráfico. E elas apresentam vários problemas. De acordo com o Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil em março de 2004, o tráfico de seres humanos envolve engano ou coação da pessoa (no recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas), convertendo-a em vítima. O tráfico apropria-se da sua liberdade por dívida ou outro meio, sempre com propósito de exploração (incluindo a exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual). Embora no Protocolo se deixe claro que o consentimento da pessoa traficada é irrelevante, há uma forte ênfase na idéia de engano e coação. No debate internacional se discutem vários aspectos pouco precisos desta definição, por exemplo, o alcance da noção de coação. Algumas leituras estendem o conceito de coação para qualquer situação de vulnerabilidade. Por exemplo, uma pessoa pobre de um país pobre é muitas vezes considerada coagida apenas pela situação de pobreza e não por violência ou ameaças. Se discute também exatamente o alcance da expressão “explorar a prostituição” e “outras formas de exploração sexual”. Paralelamente, a legislação brasileira apresenta uma conceitualização mais restritiva do tráfico.

No Código Penal Brasileiro (Cap V, Art. 231, incisos 1, 2 e 3) é considerado tráfico (de mulheres) promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro, prevendo multas e penas adicionais nos casos nos quais há emprego de violência, grave ameaça ou fraude e fins de lucro. A leiI nº 11.106, de 28 de março de 2005 modificou o Cap V do Código Penal, tratando de tráfico internacional de pessoas (e não mulheres) e adicionando disposições relativas ao tráfico interno (isto é, no âmbito do território nacional) de pessoas. De acordo com o Código Penal, portanto, qualquer facilitação para que alguém viaje ao exterior para trabalhar na prostituição pode ser vinculada a um quadro de tráfico, mesmo que não se trate de organizações criminosas organizadas, mas, como é freqüente no Brasil, da ajuda de parentes, amigas, vizinhas.

Esta explicação é necessária para compreender que do ponto de vista técnico/legal, no Brasil, uma série de viagens ao exterior para trabalhar na indústria do sexo nas quais não há coação, engano, ameaças ou violência, são consideradas tráfico internacional de pessoas.

A sra. acredita que o tráfico de mulheres realmente exista, ou trata-se na verdade de turismo sexual, uma migração voluntária de mulheres com diversos fins?

Turismo sexual e tráfico são duas problemáticas diferentes, embora o debate público muitas vezes as confunda ou estabeleça relações causais entre uma e outra, afirmando, por exemplo, que o turismo sexual é um ou o caminho para o tráfico de mulheres. O turismo sexual envolve viagens basicamente centradas na procura de consumo de sexo, geralmente protagonizadas por pessoas dos países ricos viajando em direção aos países do Sul. Tende a ser pensado como protagonizado por homens heterossexuais mais velhos, viajando em pacotes organizados. Mas, uma série de estudos realizados nas mais diversas partes do mundo, sobretudo a partir da década de 1990, desmontaram diversos supostos generalizantes sobre o tema, mostrando como em certas partes do mundo há sobretudo mulheres e não homens viajando à procura do consumo de sexo com nativos.

A realidade é que, em diversos contextos de turismo sexual, nativos/as desejam migrar e tentam materializar seus sonhos de migração através dos recursos oferecidos pelos/as turistas à procura de sexo. Também é verdade que nos contextos de turismo sexual operam agenciadores nacionais ou internacionais estimulando jovens envolvidos/as no trabalho sexual para migrarem. Levando em conta minhas experiências de pesquisa no Brasil e com brasileiras trabalhando na indústria do sexo no exterior, diria que os dois tipos de situações existem. Entrevistei brasileiras trabalhando como prostitutas na Espanha que tinham sido contatadas por agenciadores em boates voltadas para a prostituição com estrangeiros no Rio e em Natal. Mas, também, entrevistei uma diversidade de garotas residindo na Europa que tinham migrado através de namorados estrangeiros encontrados em contextos de turismo sexual em Fortaleza, considerando que eles ofereciam inúmeras vantagens em relação aos “agenciadores”, sobretudo por oferecerem os recursos para viajar (passaporte, passagem, dinheiro para o ingresso, recepção e hospedagem) sem contrair dívidas. E, mais ainda, várias dessas entrevistadas, que tinham feito “programas” no Brasil, deixaram de fazê-los no exterior. Assim, a conclusão é que, embora em certos contextos, turismo sexual e migração para se inserir na indústria do sexo possam estar relacionados, não há uma vinculação linear.

Isto não significa que o tráfico internacional de pessoas, no sentido de coação, trabalho forçado, violência, não exista. Encontrei casos extremamente delicados, tratados por organizações não governamentais na Europa, de adolescentes e adultas das mais diversas nacionalidades. A dificuldade, em termos da problemática do tráfico, é estabelecer os limites entre situações que, embora consideradas ilegais em diferentes países, envolvem a vontade e a opção dos agentes envolvidos e outras que não. Podemos pensar em diferentes exemplos. Uma pessoa em situação ilegal (porque excedeu o tempo de permanência legal) que deseja trabalhar na prostituição, sabe que deverá pagar uma dívida pela passagem obtida que duplica ou triplica seu valor. Ela sabe que, somente depois de pagá-la, o que fará em um par de meses, começará a juntar dinheiro para si. Existem pessoas que viajam voluntariamente, mas ao chegarem, descobrem que a dívida era maior do que haviam sido informadas, que teriam que pagar um preço abusivo pela hospedagem e/ou, ainda, teriam que “comprar um ponto”. E falo em pessoas, não em mulheres, considerando a importância do trabalho de “transgêneros” brasileiras no mercado sexual europeu, e o fato de elas estarem muitas vezes em situação extrema de vulnerabilidade.

Alguns setores sociais, a fim de sensibilizar a opinião pública para o problema do tráfico, misturam prostituição forçada, turismo sexual e prostituição infantil, assuntos que causam uma certa rejeição da sociedade. Esses discursos nacionais e internacionais sobre o tráfico não viriam a contribuir, na verdade, para o controle da mobilidade, dos corpos e da sexualidade das mulheres?

Esses discursos e as campanhas anti-tráfico por eles informadas tendem a ser bem intencionados, no sentido de pretender proteger as pessoas, sobretudo as mulheres, de situações de violência. Mas, de fato, eles contribuem para o controle da mobilidade. Além disso, cabe também perguntar o quanto eles, de fato, protegem as pessoas. Estou pensando basicamente nos casos de grave coação, ameaça e violência e o tratamento dispensado a eles em certos países. Espanha é um país sugestivo para pensar no efeito desses discursos por uma série de motivos. É um país alvo da migração de brasileiras para trabalhar na indústria do sexo; tem se articulado com o Brasil em uma série de operações internacionais para combater o tráfico de pessoas e conta com ativas organizações não governamentais que apóiam trabalhadores/as do sexo, para citar algumas, em Madrid e Barcelona. As operações para “resgatar vítimas do tráfico” por parte da polícia, inclusive brasileiras, conduziram muitas mulheres trabalhando na indústria do sexo à prisão (e posterior deportação) por estarem em situação ilegal. Ao mesmo tempo, as ONGs afirmam que as graves situações de escravização e risco de vida por elas denunciadas são negligenciadas sob a alegação de não contarem com espaços/abrigos e programas para auxiliar as pessoas em situação de tráfico e em risco de vida.

Alguns países da América Latina são tidos mundialmente como paraísos sexuais, lugares procurados pelos turistas do primeiro mundo para o sexo . Que fatores definem esses destinos – somente a possibilidade de sexo barato?

Na construção desses paraísos sexuais se combinam diversos fatores. Um deles é o aspecto econômico, a pobreza, que incide na possibilidade de obtenção de sexo barato. Mas, a pobreza, nem sequer quando é extrema, garante o “sucesso” de um local nos circuitos mundiais de turismo sexual. Os fatores culturais, vinculados à produção de estilos de sexualidade, marcados por aspectos raciais e étnicos, são fundamentais. Assim, por exemplo, Paraguai, considerado por turistas sexuais como “verdadeiro Terceiro Mundo”, no qual todo tipo de prática sexual é possível, não se “firma” nesses circuitos, nem tampouco Bolívia, no qual as mulheres disponíveis para o sexo são consideradas excessivamente “indígenas” e “pouco quentes”.

Por outro lado, o que motiva as mulheres que fazem o percurso contrário: saem de seus países de origem, onde não são prostitutas, para vender sexo no exterior?

Levando em conta a inserção das brasileiras no mercado do sexo, de fato, algumas das que viajam para trabalhar na indústria do sexo no exterior já foram prostitutas no Brasil e outras não. A questão econômica é um dos principais aspectos que as motivam a viajar. Não se trata de extrema pobreza, as pesquisas realizadas até o momento mostram que parte substantiva dessa população pertence a estratos baixos e médios baixos, mas não miseráveis e que conta com mais anos de estudo que a média da população brasileira. As motivações econômicas estão associadas a sonhos comuns da classe média brasileira: a compra da casa própria, do carro, instalar o próprio negócio, um salão de beleza, um supermercado, cuidar da educação dos filhos. Às vezes, essas migrações fazem parte de estratégias familiares, outras vezes se trata de projetos individuais. Há outros fatores, como o desejo de conhecer lugares novos, um certo glamour e, tanto no caso de mulheres como de “transgêneros’, a idéia de fugir de padrões de gênero percebidos como mais rígidos e discriminatórios no Brasil. E também é necessário levar em conta uma certa “normalização” da prostituição, tomando emprestado um termo de Luiz Fernando Dias Duarte. Analisando os deslocamentos recentes das fronteiras em torno à sexualidade, ele chama a atenção para as intensas negociações em curso a respeito da “normalização” de práticas sexuais que foram objeto de intensa rejeição no passado, como o adultério, a masturbação, a pornografia, a sodomia, o homoerotismo e a prostituição, que se articulam à criminalização de outras práticas, como a violência sexual ou a pedofilia. A idéia de uma certa “normalização” é recorrente nos relatos de mulheres inseridas na indústria do sexo na Europa, que não exerciam a prostituição no Brasil, de não ver a prostituição como “um bicho de sete cabeças”. E isto vale para pessoas que desempenham diferentes atividades dentro dessa indústria, seja stripers ou prostitutas.

Em seu artigo, a sra. trata de gênero e raça como agentes metafóricos. Qual a importância dessas duas categorias no universo do turismo sexual?

No universo do turismo sexual que estudei, em Fortaleza, me centrei em uma modalidade de turismo heterossexual à procura de sexo. Os atributos em jogo eram produzidos na imbricação de noções de feminilidade e masculinidade vinculadas à origem nacional, raça, classe e idade, em processos nos quais as mulheres nativas, tornadas exóticas, eram intensamente sexualizadas, enquanto os estrangeiros eram considerados a corporificação dos estilos mais valorizados de masculinidade. Nesse marco, as desigualdades estruturais permeando os relacionamentos se expressavam, alternativamente, através de noções de gênero (os estilos de feminilidade tidos como alegres, submissos e quentes atribuídos às nativas e as maneiras de ser homem vinculadas aos estrangeiros) ou através de idéias de “cor” (a cor morena, associada a uma sexualidade exacerbada atribuída às mulheres nativas e a cor branca, vinculada aos estrangeiros dos países do Norte).

O Governo Federal iniciou uma campanha contra o tráfico de mulheres. Como avalia tal iniciativa? A sra. considera que esse seja um dos papéis do Estado?

É dever do Estado garantir a segurança e a proteção de cidadãos e cidadãs. Nesse sentido, sem dúvida é um dos seus papéis. As campanhas contra o tráfico podem ser instrumentos dessa proteção. No entanto, as discussões internacionais mostram os problemas envolvidos nas definições de tráfico, no conteúdo desta expressão. Seria importante avançar nelas, no plano nacional e internacional, para poder implementar campanhas que de fato protejam as pessoas envolvidas.

Publicada em: 07/12/2005

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