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Brasil
Eterno desafío
No artigo “Planejamento Familiar: eterno desafio”, a diretora do Instituto Patrícia Galvão, Ângela Freitas, discute a questão do planejamento familiar e da contracepção, analisando principalmente os problemas em torno da tentativa de implementação de um projeto de implantes de contraceptivos hormonais em Porto Alegre. Angela Freitas* Um enfoque contemporâneo do “planejamento familiar” povoa a pauta dos legislativos e da mídia. De modo geral, este enfoque se pauta pela desinformação - ou descaso – sobre o Artigo 226 da Constituição Brasileira de 1988, que conceitua o planejamento familiar como direito de cidadania, e dispõe sobre o acesso aos recursos educacionais e científicos para seu exercício como dever do Estado. A lei de “Planejamento Familiar” - que regulamenta este artigo da Constituição - data de 1996, e prevê a oferta de um amplo leque de contraceptivos, a serem escolhidos com a orientação adequada e de acordo com a necessidade da pessoa interessada. A não implantação desta política e um sistema falho de distribuição dos métodos contraceptivos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) - que aliás acaba de ser criticado pelo novo Ministro da Saúde que quer avaliar e reformular esta distribuição - faz com que, quase 20 anos depois da Constituição e uma década depois da promulgação da lei, a questão do “planejamento reprodutivo” ainda seja um problema. Preferimos usar esta expressão, por acreditar que o termo “planejamento familiar” torna-se excludente, se considerarmos que nem todas as situações da vivência heterossexual nas quais se necessita controlar a fecundidade são vividas em relações familiares. A ineficácia do Estado tem dado margem ao retorno à perspectiva controlista praticada nas décadas de 1960, 1970 e 1980, antes da formulação das políticas e leis de caráter mais democrático. Reascende-se uma corrente política conservadora que defende a (falsa) idéia de que o Brasil ainda precisa controlar o crescimento populacional, e de que controlando o nascimento de crianças muito pobres o país estará diminuindo a pobreza, e a criminalidade. O público especialmente visado nesta perspectiva é a faixa da adolescência e juventude. No Congresso acaba de formar-se uma Frente Parlamentar pelo Planejamento Familiar que, por exemplo, parece apoiar a proposta de alteração da Lei 9.263/1996, de autoria do senador Marcelo Crivella, reduzindo para 18 anos a idade mínima para a mulher obter a esterilização (a lei vigente determina 25 anos). Esta idéia também foi questionada pelo novo Ministro da Saúde. A sociedade brasileira carece de rediscutir este assunto, e trazemos aqui o caso do município de Porto Alegre, que sintetiza diversos elementos desta problemática. O implante, seus efeitos e desvantagens No final de novembro 2006 a imprensa noticiou que se iniciava, em Porto Alegre, um projeto de implantes de contraceptivos hormonais, tendo como público-alvo adolescentes em "vulnerabilidade social de qualquer natureza". A iniciativa é de uma recém-criada OSCIP, o Instituto Mulher Consciente/ IMC, em parceria com o Laboratório Organon, e conta com o aval da Secretaria Municipal de Saúde e o respaldo de uma aprovação, pelo Ministério Público, do uso deste método em mulheres jovens que vivem em abrigos, sob a tutela do Estado. Ao todo, estariam disponíveis 2.500 unidades do método, a serem implantadas gratuitamente em jovens de 15 a 18 anos, vivendo em 10 bairros pobres de Porto Alegre, nos quais são altas as taxas de gravidez na adolescência. O principal foco é a região da Restinga, onde 29% das crianças recém-nascidas têm mães adolescentes. Houve treinamento médico para fazer o implante, mas sintomaticamente o programa não conta com ações complementares ou vinculação com a seção de saúde da mulher do município. Isto indica que, com todo o respaldo que possa ter, o programa se distancia diametralmente dos parâmetros legais e técnicos para as políticas de planejamento reprodutivo vigentes no país, e da perspectiva de integralidade no atendimento, presente na política oficial de atenção à saúde das mulheres. Ele não foi submetido aos conselhos de saúde (municipal, estadual ou nacional) e não foi debatido pelos conselhos de direitos da mulher ou das crianças e adolescentes. Com base nesses argumentos, organizações do movimento de mulheres imediatamente reagiram contra o programa, em particular a regional local da Rede Feminista de Saúde, contando com a participação da secretária executiva desta rede, cuja sede se encontra hoje em Porto Alegre, sob a responsabilidade da jornalista Telia Negrão. O método consiste num bastonete com progestágeno (hormônio sintético) que, uma vez implantado no corpo da mulher, libera diariamente uma dose de hormônio suficiente para impedir a ovulação, prevenindo a gravidez por três anos ininterruptos. O procedimento de implantação é rápido, feito em ambulatório e com anestesia local. Faz-se um pequeno corte e o dispositivo - que tem 4 cm - é implantado sob a pele da parte interna do antebraço. Tudo muito prático e eficiente para evitar a gravidez, mas vejamos os problemas que acarreta. O implante cria um impasse quanto à prevenção das DSTs e Aids, pelo desestímulo que representa com relação ao uso do preservativo. A própria equipe responsável pelo projeto reconhece que “é importante manter o uso do preservativo, para evitar a transmissão de doenças” e a Prefeitura informou que as adolescentes seriam acompanhadas para não deixarem de usar preservativos. Mas de que forma e com que garantia de eficácia se faria este acompanhamento? Para esta pergunta parece não haver resposta. De acordo dados divulgados no site do próprio IMC (link: www.mulherconsciente.org.br) na época das denúncias, (atualmente este site está fora do ar por exigência do Ministério Público até que o IMC forneça informações mais completas) em cerca de 75% dos casos ocorre algum distúrbio: ausência ou infreqüência de sangramento menstrual (52%), sangramentos prolongados (16%) ou sangramentos freqüentes (7%). Os responsáveis pelo Programa informam que a colocação do implante é voluntária, mas não há indício de haver consentimento ou informes sobre os efeitos colaterais e sobre a existência de outros métodos que talvez fossem mais adequados para os diferentes casos. Utilizar um método desta natureza em jovens é uma opção extremamente dura, caracterizando um controle da possibilidade de procriação, que não é inócuo. Trata-se de uma abordagem que não desenvolve a autonomia e que afasta as jovens do acesso à saúde sexual e reprodutiva. O implante de progestágeno não é novidade no Brasil, e a psicóloga feminista Margareth Arilha relembra um pouco dessa história: “Ao invés de a mulher tomar o anticoncepcional diariamente, ela tem o implante subdérmico de hormônio que ficará instalado em seu organismo. A diferença é que a pílula é um método cuja interrupção de uso é determinada pela própria mulher. Caso ela não se ajuste ou tenha sintomas colaterais, pode suspender a administração do medicamento. A mulher tem autonomia de decisão. O implante é mais complicado. Foi um método muito debatido e polêmico no Brasil, e uma comissão do Ministério da Saúde na década de 1980 decidiu que ele fosse retirado de circulação”. (entrevista concedida ao jornalista Washington Castilhos) Reação e interrupção No Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 2006, a Rede Feminista de Saúde lançou uma nota (link: http://www.reddesalud.org/espanol/datos/ftp/notadenuncia.htm) apontando essas questões, e denunciando o programa do IMC por enquadrar-se entre as práticas de utilização de seres humanos para testes de medicamentos “veementemente condenadas segundo tratados assinados pelo Estado brasileiro, e [que] constituem violação da Constituição Federal”. A nota ressalta que o uso em larga escala desse método, “tendo como único critério a condição sócio-econômica”, resulta ser uma política com viés eugênico pelo perfil racial/étnico prevalente na população-alvo, que é majoritariamente afro-descendente. Na mesma ocasião o Ministério da Saúde também lançou uma forte nota assinada pela Área Técnica de Saúde da Mulher e Área Técnica de Saúde do Adolescente e do Jovem. Um dos trechos recomenda que: “as secretarias estaduais e municipais de saúde não se distanciem dos referenciais legais e técnicos para a implementação de políticas voltadas para o planejamento reprodutivo” e “opõe-se radicalmente ao controle de natalidade (imposição de metas populacionais, sejam conceptivas ou contraceptivas), em conformidade com a Constituição Federal, com a Lei 9.263/1996, que regulamenta o planejamento familiar e com os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário que tratam desse tema”. Para o MS o projeto desenvolvido em Porto Alegre não está em sintonia com os princípios dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e homens adultas(os) e adolescentes: “Um dos requisitos fundamentais para a efetivação desses direitos é a escolha livre e informada e a possibilidade do sexo seguro e sem violência, cabendo ao poder público oferecer informações e acesso a um leque de métodos e técnicas tanto para a concepção quanto para a anticoncepção, que permitam às pessoas regularem a sua fecundidade, sem colocarem em risco a sua saúde”. Referindo-se à baixa efetividade do implante, o MS mostra que este método tem um custo comparativamente superior ao dos contraceptivos já disponibilizados pelo SUS, chegando a aventar a possibilidade de que esta ação possa se constituir em “veículo de propaganda de determinado método anticoncepcional, integrando uma ampla estratégia para ampliação do mercado de consumo do mesmo”. Diante de tudo isto, o Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre (CMS), que nunca foi consultado sobre o programa - assim como também não foi consultado o Conselho de Ética em Pesquisa - se movimentou e conseguiu suspender o Programa de implantes em janeiro, para completa reavaliação. Naquele momento cerca de 200 implantes já haviam sido feitos. Realizou-se uma audiência no Ministério Público (MP), com a presença das partes interessadas, e mesmo tendo o MP discordado da decisão, o programa continua até hoje suspenso. O debate prossegue Télia Negrão considera que novas bases precisam ser estabelecidas para a política de planejamento reprodutivo em Porto Alegre, mas está ciente de que se trata de uma disputa séria, pois este programa representa a chegada à capital, de um modelo calcado no controle populacional, que vem sendo praticado há anos no estado do Rio Grande do Sul. Recentemente, ela conta, a Assembléia Legislativa lançou uma campanha que reúne o Ministério Público e o Governo do Estado, sem passar pela Secretaria da Saúde ou pela Conselho Estadual dos Direitos da Mulher. Para surpresa da imprensa e das feministas, compareceu ao lançamento desta iniciativa o arcebispo católico Dadeus Grings. Trata-se de uma campanha de conscientização sobre a importância de evitar a gravidez destinada, sobretudo, a jovens e adolescentes de famílias pobres. Entretanto, isto também não é novidade. O governo anterior do Rio Grande do Sul (Germano Rigotto/ PMDB) desenvolveu uma campanha qualificando a gravidez na adolescência como o pior acontecimento na vida de uma jovem, sem qualquer correspondente nas políticas públicas para absorver de forma adequada a demanda dela resultante. “E tudo isto acontece em um estado que tem as menores taxas de natalidade do país!” Para Télia Negrão, esta frente “legitima uma tendência já presente nos municípios onde, historicamente, se fez esterilização em massa das mulheres. São municípios ricos, de tradição germânica e população predominantemente branca, que se orgulham de seu desempenho nos índices de desenvolvimento. Há no Rio Grande do Sul um senso comum em torno do controle da natalidade e, sendo assim, apresentar um contra-discurso não é tarefa fácil”. As feministas têm explicitado que compreendem e lutam para que o direito de acesso a métodos contraceptivos por jovens seja cumprido. Mas não existe este acesso, sobretudo a programas legais e de qualidade, o que em si é entendido como violação de direitos. Esta lacuna acaba por justificar as alternativas discriminatórias e/ou ilegais que hoje se apresentam, com adesão de boa parte da opinião pública, em geral mal informada. Comunicadora Social/Diretora do Instituto Patrícia Galvão Publicada em: 24/04/2007 |