Em sua palestra no seminário “Gênero ameaça(N)do”, no dia 30 de outubro na UERJ, Rogério Diniz Junqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), discutiu como, nos últimos anos, em dezenas de países de todos os continentes, presencia-se a eclosão de um ativismo religioso reacionário que encontrou no “gênero” o principal mote em suas mobilizações. “Gênero”, “ideologia de gênero”, “teoria do gênero” ou expressões afins são brandidos em tons alarmistas, conclamando a sociedade para enfrentar um inimigo imaginário comum. E, em nome da luta contra ele, se empreendem ações políticas voltadas a reafirmar e impor valores morais tradicionais e pontos doutrinais cristãos dogmáticos e intransigentes.
Em entrevista ao CLAM, o pesquisador, autor de vários textos sobre o assunto**, expõe e comenta alguns dos principais aspectos da gênese da categoria política “ideologia de gênero”, discutida durante o seminário.
Muitos pensavam ser o discurso em torno da “ideologia de gênero” algo inventado por grupos evangélicos. Parece que não é bem assim, não é?
Rogério Junqueira: “Ideologia de gênero” é uma invenção católica que emergiu sob os desígnios do Conselho Pontifício para a Família, da Congregação para a Doutrina da Fé, entre meados da década de 1990 e no início dos 2000. Trata-se de um sintagma urdido no âmbito da formulação de uma retórica reacionária antifeminista, sintonizada com o pensamento e o catecismo de Karol Wojtyla. A matriz dessa retórica é católica – mais precisamente, neofundamentalista católica, contrária inclusive a disposições do Concílio Vaticano II.
Lembremos que, ao longo do pontificado do papa polaco, houve uma importante mudança no registro discursivo da Igreja sobre a ordem sexual. A “Teologia do Corpo”, apresentada por ele com a colaboração de Joseph Ratzinger e reafirmada por seus sucessores, postula que as disposições da mulher (como o amor materno, por exemplo) são naturais e próprias dela e que derivam da sua anatomia e da sua psicologia “particular”. A mulher deixou aí de ser representada como meramente subordinada ao homem para tornar-se sua complementar. Ora, isso não implicava um arrefecimento na doutrina. Pelo contrário. O pontificado marcou-se pela radicalização do discurso da Santa Sé sobre moralidade sexual (especialmente quanto a aborto, contracepção e homossexualidade) e um virulento ataque àquilo que se costuma chamar de modernidade. Apresentada por Wojtyla nas audiências gerais durante os primeiros cinco anos do papado, essa teologia foi reunida em Homem e Mulher o Criou, de 1984, e encontrou uma de suas mais nítidas formulações na Carta às Famílias Gratissimam Sane, de 1994.
Em poucas palavras: Wojtyla, ao fazer da heterossexualidade e da família heterossexual o centro de sua “antropologia” e de sua doutrina, acabou por produzir uma teologia cujos postulados situam a heterossexualidade na origem da sociedade e definem a complementaridade heterossexual no casamento como fundamento da harmonia social. Deste modo, a Teologia do Corpo mostrava-se sumamente estratégica para municiar o enfrentamento das propostas avançadas a partir da Conferência Internacional sobre População, no Cairo (de 1994), e da Conferência Mundial sobre as Mulheres, em Pequim (de 1995). Dentre essas propostas, aquilo que viria a ser mais tarde denominado “ideologia de gênero” seria, segundo a visão vaticana, um dos mais desventurosos legados.
Dito isso, é importante reter que, não obstante a matriz católica do discurso antigênero, a ofensiva contra a “ideologia de gênero” passou a contar com adesões de outras denominações religiosas. Mais do que simples adesão, as igrejas neopentecostais souberam se apropriar dessa retórica, sobretudo na América Latina.
Quando, como e a partir da atuação de quais atores surge o sintagma “ideologia de gênero”?
RJ: Primeiramente, vale sublinhar que, quando se afirma que o sintagma “ideologia de gênero” é uma invenção católica ou vaticana, não se pretende dizer que sua formulação tenha se dado apenas entre os muros da Santa Sé ou a partir do envolvimento do mundo católico em toda a sua diversidade. Muito diferentemente disso, para a construção do sintagma e da retórica antigênero, além dos dicastérios da Cúria Romana, foram mobilizadas figuras ultraconservadoras de conferências episcopais de diversos países, movimentos pró-vida, pró-família, associações de terapias reparativas (de “cura gay”) e thinktanks de direita. Nesse processo, foi marcante a atuação de grupos religiosos radicais estadunidenses e de membros da Opus Dei e de outros movimentos eclesiais.
A galáxia antigênero possui alguns nomes que se destacaram no processo de emergência do sintagma e dessa retórica, dentre os quais costumam ser lembrados: a jornalista e ensaísta norte-americana Dayle O’Leary, o monsenhor francês Tony Anatrella, a teóloga alemã Jutta Burgraff, a jornalista estadunidense Marguerite Peeters, a escritora alemã Gabriele Kuby, o cardeal guineense Robert Sarah e, claro, o alemão Joseph Ratzinger – cada um deles atuando de maneira influente em diferentes áreas do mundo. A América Latina deu contribuições importantes e, dentre tantos nomes, nunca poderemos nos esquecer do ultraconservador cardeal colombiano Alfonso Lopez Trujillo, que presidiu o Conselho Pontifício para a Família, de 1991 a 2008, exatamente nos períodos de construção e emergência do discurso antigênero.
Outra figura importante e que também transitou pela América Latina foi o monsenhor Michel Schooyans, um jesuíta belga que, entre 1959 e 1969, viveu no Brasil, onde foi inclusive professor na PUC de São Paulo. Esse ferrenho anticomunista se destacou pelas críticas ao aborto e ao uso de contraceptivos. Em seu livro L’Évangile face au désordre mondial, de 1997 (a edição em português é de 2000), que conta com prefácio de Ratzinger, Schooyans dedicou amplo espaço à denúncia de um complô da “ideologia de gênero”: os organismos internacionais estariam à deriva do interesse de minorias sexuais subversivas, promotoras de uma cultura antifamília, do colonialismo sexual e da ideologia da morte. Nesse livro se registra um dos primeiros (ou talvez o primeiro) registros do emprego do sintagma no sentido adotado pelas cruzadas antigênero.
Pouco depois, em abril de 1998, “ideologia de gênero” apareceu pela primeira vez em um documento eclesiástico: uma nota da Conferência Episcopal do Peru, intitulada La ideologia de género: sus peligros y alcances, produzida pelo ultraconservador monsenhor Oscar Alzamora Revoredo, marianista, Bispo Auxiliar de Lima. Esse documento, que se tornou uma referência na construção do discurso antigênero vaticano, é baseado em um artigo de O’Leary, figura importantíssima nesse inteiro processo. Ligada à Opus Dei e representante do lobby católico Family Research Council e da National Association for Research & Therapy of Homosexuality (que promove terapias reparadoras da homossexualidade), ela mantinha relações diretas com a Santa Sé, inclusive com Ratzinger. Seu livro The Gender Agenda, de 1997, traduzido em várias de línguas, tornou-se uma das bíblias do movimento antigênero.
Dois anos depois, sob a batuta do cardeal Trujillo, o sintagma compareceu pela primeira vez em um documento da Cúria Romana com a publicação de Família, Matrimônio e “uniões de fato”, em julho de 2000. Nesse ínterim, o colombiano já vinha trabalhando para conduzir a elaboração do mais amplo, incisivo e polêmico documento sobre o tema. Com efeito, em 2003, sob a égide do Conselho Pontifício para a Família foi publicado o Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Trata-se de uma espécie de dicionário enciclopédico sobre temas relativos a gênero, sexualidade e bioética, para o qual colaboraram mais de 70 autores conselheiros do Vaticano ou atuantes em suas instituições de ensino. O Lexicon, a suma teórica do discurso antigênero, ataca vigorosamente todo um conjunto de valores e referências que se consolidou sobretudo em sociedades secularizadas e que, ao se afirmarem nas conferências da ONU, disseminava-se pelo mundo. Seus verbetes tornaram-se textos de iniciação para interessados em aprender sobre a “ideologia de gênero” e a combatê-la. Suas traduções em português e espanhol saíram no ano seguinte.
Depois disso, como observou Sara Garbagnoli, houve certo silêncio estratégico sobre o tema por parte desses atores. De fato, entre os anos que antecederam a produção do Lexicon e os imediatamente após a sua publicação, Ratzinger era quase o único expoente da Igreja a fazer declarações públicas em relação ao gender. A mudança se deu partir de 2008. Naquele ano, na condição de papa, ele começou a proferir discursos sobre o tema que, embora expressassem um ponto de vista típico de uma ideologia religiosa, eram apresentados como uma manifestação do interesse público universal. O alemão defendia que a reflexão sobre a identidade sexual e as construções sociais relativas ao gênero poderiam desintegrar o ser humano, tal qual a ação humana insensata destruiria a natureza. A Igreja teria a responsabilidade de intervir para impedir isso. Os seus pronunciamentos por ocasião do Natal em 2008 e, especialmente, o de 2012 parecem ter representado um sinal verde para a eclosão em moldes transnacionais da ofensiva antigênero.
Atualmente presente em mais de 50 países, essa ofensiva, em que pese a diversidade de contextos e atores, possui elementos políticos e estratégias em comum ou muito semelhantes, o que indica forte articulação entre as iniciativas.
Seria interessante contextualizar a emergência desse ativismo religioso antigênero em relação a outros processos políticos. Com quais objetivos ou em reação a que processos este sintagma aparece e começa a ser difundido pelo mundo?
RJ: Estudiosos sobre o tema apontam que, além de recuperar espaço à Igreja em sociedades envolvidas em distintos processos de secularização, tal ofensiva visa, muito claramente, conter o avanço de políticas voltadas a garantir ou ampliar os direitos humanos de mulheres, pessoas não-heterossexuais, transgêneros e outros dissidentes da ordem sexual e de gênero. De todo modo, é fundamental reiterar que o processo de mobilização de um ativismo religioso que levou à elaboração e disseminação do sintagma a partir de alguns setores da Igreja Católica pode ser entendido como uma reação direta e imediata às discussões ocorridas para a aprovação dos documentos das Conferência do Cairo e Pequim.
Logo após esses eventos, o Vaticano convocou dezenas de “especialistas” para pôr em marcha uma ofensiva para reafirmar a doutrina católica e a naturalização da ordem sexual. A principal intencionalidade desses missionários da “família natural” era e é opor-se a ações voltadas a legalizar o aborto, criminalizar discriminações e violências em função da orientação sexual e da identidade de gênero, legalizar o casamento igualitário, reconhecer a homoparentalidade, estender o direito de adoção a genitores de mesmo sexo, bem como políticas educacionais de igualdade sexual e de gênero e de promoção do reconhecimento da diferença/diversidade sexual e de gênero. E nada impede que atores conservadores não necessariamente religiosos, como partidos ou grupos defensores de políticas neoliberais, possam aderir ou acionar elementos dessa agenda antifeminista e anti-LGBTI. De fato, há uma convergência entre neofundamentalismo religioso e neoliberalismo. O lema “Mais família, menos Estado” tem circulado bastante entre eles.
A “defesa da família” por parte dos setores conservadores e ultraconservadores pode ser construída nos planos moral e socioeconômico. Flávia Biroli tem chamado a atenção para o fato de que a restrição do sentido de família em termos moralistas se faz acompanhar do cultivo de sua concepção como unidade privada. Essa família se vê, então, incumbida de crescentes responsabilidades à medida que os direitos sociais são precarizados e o Estado se desobriga em realizar políticas distributivas e de proteção social. A investida contra os direitos sociais incide especialmente em âmbitos da vida privada assumidos sobretudo pelas mulheres.
Ao lado disso, vale notar que, ao expandir seus sentidos e dotar-se de caráter universalizante, assumindo os contornos de um “significante vazio” (tal como entendido por Ernesto Laclau), “ideologia de gênero” passa a operar como elemento de representação e articulação de cadeias discursivas e equivalências. Assim, de maneira contingente, no âmbito de batalhas por hegemonia, o sintagma pode atrair ou aglutinar diversas demandas políticas, propiciar adesões de atores distintos, ensejar instrumentalizações e revestir os discursos de aparente coerência. Em muitos países, vemos agremiações políticas de direita de caráter populista ou nacionalista acionarem-no segundos seus variados propósitos.
Na sua exposição, você nota que o sintagma “ideologia de gênero” foi progressivamente se descolando dos contextos vaticanos e passou a animar ações midiaticamente muito eficazes, para enfim se legitimar como categoria política, passando a figurar em documentos de Estado e estar presentes em pronunciamentos de dirigentes políticos, inclusive com ares de aparente laicidade. A partir de que estratégias isso se tornou possível?
RJ: A desconfissionalização do discurso antigênero tem sido uma das estratégias adotadas para conferir a essas ofensivas uma feição universalista à altura dos desafios éticos contemporâneos e evitar que sejam percebidas como uma resposta religiosa tradicionalista e reacionária. Basta notar os frequentes apelos ou à “Ciência”, especialmente à Biologia, à Psicologia ou à Psicanálise, sempre de maneira seletiva e inconsistente. Ao lado disso, a tônica é também afirmar que o discurso antigênero teria bases científicas, contrapondo-o à enganosa “ideologia” ou à infundada “teoria” do gênero.
Essa desconfessionalização (tal como a entende Romain Carnac) contribui para que grupos não explicitamente religiosos, políticos e gestores públicos, entre outros, possam somar-se às hostes da defesa da ordem sexual e da “família natural” e agir orientados, aparentemente, a partir de princípios legais, técnicos, em favor do interesse público, na luta contra a “teoria/ideologia do gênero”. No entanto, em todos os casos, mesmo quando não explicitamente em cena, a matriz religiosa do discurso continua a soprar os papéis.
De toda sorte, ao fazer das questões de gênero e sexualidade uma controvérsia sobre o “humano” e a sobrevivência da sociedade, os setores mais conservadores da Igreja Católica, seus sequazes e outros grupos que aderiram a esse discurso, parecem ter encontrado um meio eficiente de afirmar e disseminar seus valores, recuperar espaços políticos e angariar mais apoio. Afinal, ao sabor de uma controvérsia astutamente associada à promoção do pânico moral, a matriz religiosa do movimento antigênero pode ficar ainda menos evidente.
Em todos os casos, os cruzados morais investem maciçamente na renaturalização das concepções de família, maternidade, filiação, parentesco, heterossexualidade, diferença sexual e de toda a ordem sexual. Ao lado disso, em vez de debater com os seus adversários, preferem ridicularizá-los e estigmatizá-los como: destruidores da família, familiofóbicos, homossexualistas, gayzistas, feminazis, pedófilos, heterofóbicos, cristofóbicos, etc.
Ao lado disso, as formulações teóricas dos adversários devem ser capturadas, descontextualizadas, homogeneizadas, esvaziadas, reduzidas a uma teoria, distorcidas, caricaturadas e embutidas de elementos grotescos para serem, finalmente, denunciadas e repelidas. O seu público-alvo, os atores cujas mentes e corações eles anseiam alcançar, seduzir e arrancar adesão, são principalmente gestores públicos, parlamentares, juristas, jornalistas, dirigentes escolares, eleitores, como bem notou a Garbagnoli.
Outra coisa: em alguns países, nota-se a estratégia sutil de empregar o termo gender, em inglês. O propósito é o de promover um estranhamento e, por conseguinte, o rechaço de um conteúdo, objetivado como uma “propaganda”, uma imposição do imperialismo cultural dos Estados Unidos da América, da ONU, da União Europeia e das agências e corporações transnacionais dominadas por “lobbies gays”, feministas – que juntamente com defensores do multiculturalismo e do politicamente correto, extremistas ambientalistas, neomarxistas e outros pós-modernos, garantiriam a hegemonia daquela “ideologia” naqueles ambientes peculiares. Gender, de tão alienígena e inapropriado, nem encontraria exata tradução.
Dito isso, não se pode esquecer que um dos alvos principais – se não o principal alvo – dessa ofensiva são as escolas, apresentadas como verdadeiros “campos de reeducação e de doutrinação” da “ideologia de gênero”. Cruzados antigênero, supostamente em nome da “defesa das crianças”, empenham-se para obstruir propostas educacionais inclusivas, antidiscriminatórias, voltadas a valorizar a laicidade, o pluralismo, a promover o reconhecimento da diferença e garantir o caráter público e cidadão da formação escolar.
Tais propostas são denunciadas como “ameaça à liberdade de expressão, crença e consciência” das famílias cujos valores morais e religiosos seriam inconciliáveis com as normativas sobre direitos humanos impostas por governos e organismos internacionais. E mais: escolas e professores sintonizados com a “ideologia de gênero” visariam usurpar dos pais o protagonismo na educação moral e sexual de crianças e adolescentes para instilar-lhes a propaganda do gender e, assim, doutriná-los conforme as crenças e os valores de um sistema de “pensamento único”, hermético, ambíguo, sedutor, enganoso, danoso e manipulador da natureza humana. Assim, a defesa da primazia da família na educação moral dos filhos se faz acompanhar de ataques aos currículos e à liberdade docente, em nome do “direito a uma escola não ideológica” ou a uma “escola sem gênero”. Um slogan em torno do qual podem se agregar vários setores sociais, com diferentes propósitos, especialmente aqueles com concepções antipolíticas, que se afirmam como não-ideológicos ou anti-ideológicos. Nada mais contrário às concepções contemporâneas acerca da educação de qualidade, laica e inclusiva.
É importante sublinhar que “teoria/ideologia de gênero” não é sinônimo de “Estudos de Gênero”. Como é possível entender (e desfazer) essa confusão?
RJ: No discurso antigênero, a complexidade e a pluralidade características de estudos, pesquisas, reflexões e debates inesgotáveis do campo (Estudos de Gênero, Estudos Feministas, Transfeminismo, Estudos Gays e Lésbicos, Teoria Queer, etc.), que contemplam diferentes disciplinas, matrizes teóricas e políticas, são reduzidas a uma mera “teoria”, declinada sempre no singular e apresentada como algo sem base científica, insidiosamente sedutora e fundamentalmente danosa.
Ora, ao simplificarem brutalmente, descontextualizarem e reduzirem um vasto e complexo campo de estudos a uma infundada teoria, os cruzados antigênero pretendem extinguir seu vigor teórico, minar seu potencial analítico e político. Ao mesmo tempo, essa artimanha retórica lhes serve também para criar a ilusão de um inimigo comum e personificado – único e organizado e que deve ser demonizado.
Em vários documentos produzidos no âmbito dessa cruzada, “teoria”, além de aparecer no singular, frequentemente é substituída por “ideologia”. E aí precisamos ter o cuidado de notar que não estamos diante de conceitos científicos, mas de sintagmas fabricados na forma de rótulos políticos, que funcionam como sinais de adesão, pontos de referência na construção e na atuação de grupos de mobilização.
Dito isso, cabe insistir: estudiosos do tema apontam que essas grotescas formulações paródicas atuam como poderosos dispositivos retóricos reacionários que se prestam eficazmente a instaurar um clima de pânico moral contra grupos social e sexualmente vulneráveis e marginalizados e a promover polêmicas, ridicularizações, intimidações e ameaças contra atores e instituições inclinados a implementar legislações, políticas sociais ou pedagógicas que pareçam contrariar os interesses daqueles que se colocam como arautos da família e dos valores morais e religiosos tradicionais.
Agora, diante de algo que parece puro nonsense, mas que foi cuidadosamente urdido, as pessoas familiarizadas com o Feminismo tendem a dizer: não existe “teoria de gênero” ou “ideologia de gênero”, mas sim Estudos de Gênero e afins. Embora correta, essa afirmação nos coloca ainda em uma posição meramente defensiva. Dentre as várias alternativas a isso, pessoalmente prefiro, como fazem Anne-Charlotte Husson, Vanessa Roghi e Sara Garbagnoli, afirmar: sim, existe “ideologia de gênero”, mas não conforme descrevem ou denunciam os cruzados antigênero. Existe como invenção vaticana polêmica. Ou seja: é um sintagma forjado para operar como uma arma política, enquanto dispositivo retórico, metadiscursivo, paródico e reacionário.
Esse dispositivo é acionado com o objetivo de conter ou anular o potencial crítico e emancipador do feminismo e dos Estudos de Gênero e deslegitimar atores e reivindicações neles fundamentados. Ao mesmo tempo, a promoção do pânico moral que acompanha tal acionamento permite a setores tradicionalistas e ultraconservadores buscar preservar, valorizar, angariar ou recuperar seu capital social e político, ameaçado pela secularização e as transformações no terreno da sexualidade e das relações de gênero. Isso vale especialmente para o campo eclesiástico, interessado em manter e ampliar sua influência, inclusive em temas e espaços não estritamente religiosos ou que, em sociedades laicas, não deveriam ser religiosos, como a educação e a saúde pública.
“Teoria de gênero” ou “ideologia de gênero”, portanto, existe sim, mas não corresponde e nem tampouco resulta do campo dos Estudos de Gênero ou dos movimentos feministas e LGBTI. É, em vez disso, um dispositivo de origem vaticana urdido especialmente (e não apenas) para promover uma agenda ultraconservadora, antifeminista e antagônica à democracia e aos direitos humanos entendidos em bases mais amplas e plurais.
Entender e denunciar como opera o discurso antigênero, identificar quem são os atores envolvidos nessas ofensivas, seus interesses, formas de financiamento e estratégias, perceber seus limites e contradições, são passos essenciais para enfrentá-los. Eles não são invencíveis. Apesar da virulência e da sanha que demonstram, já colecionam derrotas importantes. Vamos em frente.
* Professoras adjuntas do Instituto de Medicina Social, IMS/UERJ. pesquisadoras do CLAM.
**Alguns textos do entrevistado sobre “ideologia de gênero”
Junqueira, R. D. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária – ou: como a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”. In: Paula R. Costa Ribeiro, Joanalira C. Magalhães (orgs). Debates contemporâneos sobre Educação para a sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG, 2017. Disponível em: goo.gl/MUN9tM
Junqueira, R. D. “Ideologia de gênero”: uma categoria de mobilização política. In: Márcia Alves da Silva (org.). Gênero e diversidade: debatendo identidades. São Paulo: Perse, 2016.
Junqueira, R. D. “Ideologia de gênero”: um dispositivo retórico de uma ofensiva antifeminista. In: Alfrâncio F. Dias; Elza F. Santos; Maria Helena S. Cruz (orgs.). Gênero e sexualidades: entre invenções e desarticulações. Aracaju: Editora IFS, 2017.
Junqueira, R. D. “Ideologia de gênero”: a invenção de uma categoria polêmica contra os direitos sexuais. In: Marcelo M. Ramos; Pedro A. G. Nicoli; Gabriela C. Alkmin (orgs.). Gênero, sexualidade e direitos humanos: perspectivas multidisciplinares. Belo Horizonte: Initia Via, 2017. Disp.: goo.gl/JgyPzN.
Junqueira, R. D. “Ideologia de gênero”: uma invenção vaticana para uma retórica reacionária. Revista de Psicologia Pollítica, São Paulo, número especial, 2018 (no prelo).